Opinião: Miguel M. Riscado | A obsessão pelo Super Homem
Por Jornal Fórum
Publicado em 22/10/2025 05:44
Opinião

Com o final da Segunda Guerra Mundial, as potências vencedoras, assumindo e mantendo o papel de titãs, proclamaram guerra uma a outra. A Guerra Fria opunha, não apenas o poderio militar e a ideologia política, mas uma filosofia de vida. Não esquecendo as barbaridades perpetradas por ambos os lados, em Estados estrangeiros tal qual tabuleiro de xadrez e contra os seus próprios patrícios, espiando-os e ostracizando-os, a base da luta armada estava, simplificando (em demasia, claro), entre coletivismo e individualismo.  

Não releva para aqui quem ganhou, se é que houve vencedor, desse (para)conflito. Importa sim, focar uma qualidade em comum, de certo modo posterior, mas com raízes anteriores, de ambos os lados — a obsessão pelo Super Homem. Não me reporto diretamente ao Übermensch, apenas à vassalagem e subserviência prestada pelas massas a um indivíduo só. A evolução desta congruência é distinta nos dois lados da barricada, mas resume-se fundamentalmente à necessidade imediata de transcendência. Recuando um pouco na breve história norte-americana, não é difícil entender o enraizamento desta ideia. A viagem dos imigrantes europeus para o Mundo Novo, o massacre dos Nativos, a Febre do Ouro, o self-made man, todos provam a obsessão pelo enriquecimento e pela tentativa de “fazerem o seu nome”. Destaco, contudo, uma série de eventos que marcam, ainda hoje, o quotidiano americano: os Grandes Despertamentos. Consistem em movimentos religiosos — verdadeiramente spin-offs do protestantismo cristão — liderados, usualmente, por um chefe carismática quasi profético. Ainda que diferentes no seu credo, as semelhanças entre estes movimentos são gritantes — a obsessão com o Apocalipse, muitas vezes com referência à sua iminência, a expurgação dos errantes, o isolamento da sociedade desvirtuada: no fundo, a lógica do “nós contra eles”. Não raras vezes, no seio destas correntes, têm ocorrido violações graves dos direitos dos seus membros, em situação de quase-sequestro, bem como todo o tipo de abusos — o que, envolvendo Deus e a religião, é abominável em qualquer fé.  

O surgimento destes novos “pastores”, além da orientação momentânea dos seguidores, cria, em cada membro do grupo, a ideia de pertença e, em especial, de unicidade — “somos únicos, especiais, porque pertencemos a esta ideia”. Estes movimentos não foram ignorados, nomeadamente no seu método, pelo marketing político, essa área tão criativa entre comunicação, análise social e futurologia. 

A ideia do Grande Homem, que se tenta assemelhar a um deus, passou a ser utilizada como pau de medida político. Não é, seguramente, um fenómeno novo — as experiências terríveis do século XX, idealizado como o século da inovação, mas efetivamente o século das barbaridades, provam isso mesmo. Muito haveria para discorrer sobre isto, mas gostaria, apenas, de destacar uma característica destas correntes: a infalibilidade do líder. 

Referi-me anteriormente ao modelo americano, apenas por ser democrático. Nos modelos não democráticos isto é o pão nosso de cada dia — o cidadão come e cala; aliás as colónias norte-coreanas, que penalizam até gerações de posterioridade do opositor, demonstram a situação perfeitamente. Mas no modelo democrático custa a entender a infalibilidade de um igual. É, aliás, contra natura — se o eleito é elegido entre os seus pares e todos os pares são falíveis (são humanos, caramba, erram e pecam), como pode este ser um ser perfeito. O caso Epstein-Trump é o exemplo cabal disso. Uma bandeira do atual presidente em campanha, que rapidamente foi varrida para baixo do tapete, sem a divulgação (prometida) da informação completa sobre a rede de pedofilia e sobre a morte do cicerone dessas festas. Assistimos, agora, ao ridículo do presidente dizer ser esta uma charada democrata (do partido, não do regime). Também desse lado haverá maçãs podres e não em menor número.  

Tudo se define na escolha: o cidadão escolhe olhar para as putativas qualidades sem fim do alegado infalível, ignorando a montanha de suspeitas, alimentando a conspiração e magicando serem ideias dos rivais. Que se escolha bem para o bem do nosso futuro, sem cair em artimanhas, nem em fantasias irreais.

 
 

Gostou deste conteúdo?
Ver parcial
Sim
Não
Voltar

Comentários
Comentário enviado com sucesso!

Chat Online