Opinião: José Avelino Gonçalves | Josefa, o abastado agricultor e a “verba de ferrolho”.
Por Jornal Fórum
Publicado em 22/10/2025 05:36
Opinião

A Josefa de Figueiredo, uma formosíssima moça, alta e morena, uma raparigaça de muito boas curvas, foi dada à luz na Aldeia do Mato (Vale Formoso). Vai de criada de servir para Valhelhas, uma vila centenária de casas brasonadas. As dos de Gouveia e de Castro, senhores de Valhelhas e as dos Fonseca Osório, senhores do Morgado de Valhelhas, impõem-se. O velho castelo, construído no cocuruto da vila, vai-se esborralhando na poeira dos tempos. Apenas resta a torre de menagem! 

A opulenta casa agrícola, que abraça o vale soalheiro e embeiça com as águas frescas e limpas que correm no Zêzere, recebe a moça que fora cortada em boa lua. Josefa gostava de rir e de troçar, era danada para os piropos. O regalo da criadagem! Os olhos dum negro tão líquido e sério assombrava os muitos pretendentes. A moça serrana, que tinha o hábito de apertar as saias nas pernas longas e bonitas, desgarrava nas modinhas campesinas, afrontava os moços do campo. 

Na tarde desse dia, muito amoroso, muito lavado, o abastado agricultor, da cepa de D. Gomes Fernandes, almoçara com suculência. Uma apetitosa cabidela de galinha, criada nos campos ricos do vale, acompanhado por um finíssimo clarete das cepas centenárias que trepam à serra da Estrela e umas deliciosas papas de carolo, feitas com o mel dos matos de Verdelhos.  

O homem, que tinha manias aristocráticas, passeava no compasso do charuto, remoía o almoço, pensava nela. A parreira, prenhe de uvas negras, prontas a serem colhidas, serenava o sol das três da tarde. Os melros assobiavam e os pintassilgos gorjeavam os seus requebros às margens do rio. Ele, que nunca pusera o “pé em ramo verde”, sentia-se um adolescente, terrivelmente apaixonado.  

Aqueles dias outonais cheiravam, ainda, a Verão, a paixão assolapada! O adultério nunca se escoou dos muros da quinta, onde o vago descendente do nobre Fernandes, impunemente, se dava às delicias do corpo da Josefa. Afrontava a pudicícia, a honra de uma doce rapariga de dezoito primaveras!  

Dona Joana, excelente matrona e mãe, sem o saber, entregava-se aos regalos da sestazinha nos quartos do fundo da casa rica. 

A boa da tia Josefina ainda sugeriu os serviços de um tal João Catarro de Casegas. Um marinheiro que dava remédios a mulheres pejadas para abortarem! O problema é que a Justiça de Arganil o queria degredar para Cabo Verde. O tipo, fingindo-se juiz da correição da comarca, atrevera-se a roubar o padre do Piódão.  

Um pecador, que na Teixeira de Cima subira ao púlpito com um crucifixo na mão e tentara “confessar” uma paroquiana de “encher o olho”! 

O dia chegou, ninguém lhe ouviu os últimos gritos, nem os primeiros vagidos da criança, resistiu às dores que a atormentavam! Era, simplesmente, o filho bastardo de um agricultor rico de Valhelhas. Joaquim, que nascera muito enfezado, muito doentinho, agora é filho da nação, que à sua custa o vai criar e educar!  

Josefa que era mulher robusta, tratou de si e da criança. Achando-se ainda prenha, sem ser de legítimo matrimónio, muito pobre, tratou de o enviar à roda dos expostos, na vila de Belmonte.  

O João da Fonseca, carvoeiro, de idade de vinte e seis anos mais ou menos, que lhe era muito afeiçoado e a troco de três moedas, leva o menino a Belmonte. Aconchega-o nas escadinhas que dão para a casa de Maria Tavares, uma viúva rica que tinha perdido o marido em conflito de partilhas.  

Trazia de enxoval duas envoltas de baetilha branca novas, guarnecidas de chita, três camisas, três cueirinhos, um garruço de chita nova e um jaquetão também de chita. A aconchegar, bilhetinho mal-amanhado, com uma escrita muito sofrida, muito chorosa: “achando-me grávida sem ser de legítimo matrimónio, pela minha pobreza e vergonha, sou obrigado a entregar, nas mãos de Deus, o meu pobre Joaquim”. 

Ao arraiar do dia, nas árvores do quintal da viúva, exposto às vistas e que atestava com o castelo dos Cabrais, começavam a chilrear os pássaros. Na Igreja de S. Tiago soavam as sete badaladas. Na rua passavam ranchos de gente nova que iam para as segadas, cantando o S. João com acompanhamento de viola.  

A viúva Tavares ergue-se, assume à portada da janela que dá para a rua, traz embrulhado na sua mão esquerda o terço. Nesse momento vê nas escadas um embrulhozinho muito colorido e que mexia muito. Escuta o vagir convulso e ríspido da criança, aconchega-o ao peito já seco, soprando-lhe o rostinho azulado do frio e de medo. Envolve o menino numa mantinha e desanda para a casa da Câmara. 

Oh diabo! O zeloso secretário da câmara não tem amas disponíveis, que se queixavam de andar muito mal pagas. Apenas três mil réis por mês em moeda papel! Não havia “verba de ferrolho” para a criação de expostos, que todos os dias apareciam! Um escândalo, um vício! Até o depositário dos expostos andava a ser investigado pelo senhor Juiz de Fora de Sortelha, Belmonte e seus termos! José Miguel estava acusado por Maria Cecília e Joaquim Francisco, do lugar de Malpique termo da vila de Belmonte, de “aferrolhar” em seu proveito, uma boa parte dessa verba! 

O exposto Joaquim, por falta de ama, foi conversado para a Quinta do Colmeal, com recomendação ao cabo de polícia Joaquim Bernardo. Ali andou a aduar até finais de Junho, até a Ana Maria Rodrigues, mulher do Joaquim Rendeiro, o acoitar em sua casa.  

À excelente mulher, que já não podia alimentar ao seio o pequeno Joaquim, as autoridades entregaram uma cabra para criação do abandonado! O enjeitado fina-se no dia de S. Tiago, com cinco meses de idade! 

 

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