Opinião: António Lopes | Entre a demora e o descrédito
Por Jornal Fórum
Publicado em 09/07/2025 09:41 • Atualizado 09/07/2025 09:57
Opinião

Passados quatorze anos depois do início da Operação Marquês, José Sócrates apresentou queixa contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Alega a violação do seu direito a um julgamento célere e justo. Importa referir que não pretendo discutir a sua culpa ou inocência, mas de reconhecer que um dos casos judiciais mais marcantes da democracia portuguesa chegou à arena europeia sem que a justiça nacional tivesse conseguido produzir um desfecho concreto. Isso diz muito sobre o estado das nossas instituições. 

Numa altura em que a confiança nas estruturas democráticas é cada vez mais frágil, casos como estes são extremamente simbólicos. E esses símbolos são muito poderosos. A morosidade, a complexidade excessiva e a ausência de decisões claras minam a perceção de imparcialidade e eficácia do sistema judicial. Como é possível constatar através do Eurobarómetro, Portugal é um dos países da União Europeia onde os cidadãos menos confiam na justiça. O estender de megaprocessos, os sucessivos arquivamentos ou prescrições e a consequente sensação de impunidade para os mais poderosos alimental a ideia de que a justiça não é igual para todos. 

As recentes declarações de Manuela Moura Guedes, a quem desde já presto homenagem pela coragem e frontalidade, jornalista que liderou a investigação televisiva mais consistente ao então primeiro-ministro, são absolutamente relevantes. O preço foi elevado. Manuela Moura Guedes foi afastada da TVI, acusada de fazer uma espécie de caça ao homem e silenciada pela própria estrutura mediática, num enquadramento repleto de ingerências. Hoje, afirma que a justiça e a imprensa estiveram, alegadamente, completamente controladas durante o período em que Sócrates foi primeiro-ministro. O verdadeiro escândalo, não é sequer a corrupção, mas o controlo das instituições que deveriam impedir e denunciar essa corrupção. 

As declarações de Moura Guedes, mais do que um acerto de contas pessoal, funcionam como uma espécie de confirmação empírica de algo que muitos portugueses há muito suspeitam. A existência de zonas cinzentas, onde o poder político, mediático e judicial se conjugam perigosamente. Essa conjugação de poderes é, na minha perspetiva, um dos principais combustíveis da narrativa populista. Como sublinha Cas Mudde, o populismo alimenta-se da oposição entre o povo “puro” e a elite corrupta. E quanto mais o sistema parece proteger os mesmos de sempre, mais essa narrativa se torna credível. 

As forças anti-establishment, como o Chega, não perderam tempo. Utilizaram e utilizam casos como a Operação Marquês para provar o falhanço das elites e das instituições democráticas, numa procura incessante por retirar legitimidade e enfraquecer o regime, tal como o conhecemos. 

É neste ponto que me parece basilar recordar o princípio da separação de poderes, essencial em qualquer democracia liberal. A independência entre os poderes legislativo, executivo e judicial existe precisamente para impedir a concentração de poder e proteger os cidadãos contra abusos. Quando um primeiro-ministro interfere na justiça ou condiciona a liberdade da imprensa, não está apenas a ultrapassar o limite das suas funções mas sim a correr os alicerces do regime democrático. A promiscuidade entre governo, media e justiça representa uma das maiores ameaças à integridade das instituições. 

Como nos alerta Mounk, vivemos numa era em que podemos manter a fachada democrática enquanto se vão esvaziando, por dentro, os mecanismos de controlo e de responsabilização. O enfraquecimento das democracias começa pelo desgaste contínuo das instituições. 

Perante tudo isto, creio ser liminarmente imperioso refletir acerca da necessidade de uma reforma séria na justiça. Mais transparência processual, menos burocracia, mais meios para o Ministério Público, maior escrutínio sem manipulações. É preciso, sobretudo, coragem política para enfrentar interesses instalados. 

Ainda vamos a tempo de evitar que se perca o essencial: a crença de que a justiça é possível e de que vale a pena lutar por instituições que estejam à altura da democracia que queremos defender. 

 

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