Opinião: Emanuel Brasil | Carta
a sua Excelência o Senhor Presidente da República e a sua excelência o Senhor Primeiro Ministro
Por Jornal Fórum
Publicado em 20/08/2025 16:06 • Atualizado 20/08/2025 20:37
Opinião

Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro, Luís Montenegro é com extrema tristeza que vos endereço esta carta. Fala-vos do Interior de Portugal, de uma aldeia remota perdida numa encosta da Serra da Estrela, daqueles sítios em que as ditas pessoas importantes nunca cá vêm. Praticamente todos os que vivem depois da linha traçada entre litoral e Interior vivem de maneira humilde, devagar, aqui há tempo para dizer “bom dia”, para perguntar pela família e quase sempre nos deixam a frase “quando volta a mãe e o pai?”. Sim, aqueles que tiveram de sair do país a conselho de um dos vossos colegas de profissão e ex-Primeiro-Ministro Pedro Passos Coelho. No Interior não somos “maluquinhos” como apregoam nas televisões, somos mulheres e homens de trabalho que persistem em viver num local que foi abandonado por aqueles que nos lideram, que só serve para visitar durante as campanhas eleitorais ou quando um homem ou mulher falecem a defender aquilo que têm e aquilo pelo que vivem. Somos gente da terra, não das cidades grandes onde se vive a correr, gente que cuida do vizinho, do gato e do cão dos mesmos. Gente que não se verga a nenhuma adversidade, seja ela a chuva intensa ou o inferno das chamas. 

Como vossas excelências sabem, somos assolados por fogos há mais de vinte anos, (desde que me lembro de mim que há incêndios todos os anos), não há um ano que o Interior não arda, que não deixe famílias sem trabalho, casas e carros. Sem sustento para os anos que advêm e sem esperança nas “pessoas de Lisboa”. 

As visitas bianuais por parte dos líderes governamentais não são suficientes para colmatar as diferenças que tanto falam em campanhas de quarto em quatro anos, onde gritam aos sete ventos que o “Interior não será esquecido”, mas somos, ano após ano. Não temos gente suficiente, é uma verdade, comparado ao tão amado litoral somos mesmo poucos. Espalhamo-nos por aldeias com 20, às vezes 15 pessoas como é o meu caso e tentamos preservar aquilo que vocês não querem saber, a Serra, os rios, a fauna e a flora. Para além dos problemas conhecidos, todos os anos aparecem outros tantos, os agricultores são mal subsidiados porque existe “trafulha” nas candidaturas, empresas que são de agricultura num ano e de alojamento local no outro, tudo para levar dinheiro que tanta falta faz nas nossas terras. A falta de deslocamento de poderes centrais que poderiam combater alguma lacuna populacional, causas naturais como cheias, deslocamento de terras e incêndios dos quais todos temos a certeza de que em mais de 80% são provocados por mão humana. 

Vivemos num país onde criticar é fácil, a culpa é sempre de alguém e como ouvi há pouco tempo até a culpa dos incêndios que nos a estão a levar o que é nosso advém de quem cá vive. Temos o azar de viver num lugar onde ninguém se lembra de nós, onde estamos entregues às próprias mãos, como se vivêssemos num país à parte, mas com as mesmas leis, impostos e obrigações de Portugal. O nosso país completamente centralizado naquilo a que vossas excelências chamam de “cidades grandes”, no Interior não há investimento, as grandes empresas fogem da nossa terra por falta de medidas conclusivas que os levem a fixar-se por aqui. Não são Portos Secos e duas ou três empresas que vão mudar o panorama ao qual somos submetidos todos os dias quando nos levantamos das nossas camas. Aqui trabalha-se na terra, plantam-se batatas, couves, alfaces, tomates e tudo aquilo que os senhores compram num hipermercado. Aqui os legumes e as frutas não vêm do supermercado como muitos pensam e os ovos não aparecem nas prateleiras por milagre. Aqui as pessoas levantam-se antes do sol nascer, para tratar dos regadios, para que não falte nada na mesa ao final do mês e por mais cansados que estejam, no outro dia volta a ser igual. 

Este ano, segundo o ICNF, com base em dados analisados pelo “PÁGINA UM”, indica que se ultrapassou a marca de 203 422 hectares ardidos até meados de agosto de 2025, os focos de Trancoso, Satão, Arganil, Sabugal e Pêra do Moço, todos localizados no interior, consumiram mais de 80 mil hectares, segundo estimativas do EFFIS, e alguns deles continuam ativos à data desta carta que vos endereço, com milhares de hectares a serem consumidos diariamente. Agora digam-me, são números demasiado alarmantes para se estar a beber margaritas no Algarve, não acham? 

Não temos hospitais, porque não há médicos, não temos transportes porque há falta de linhas que nos liguem a outras localidades e ainda temos de “levar” com estes flagelos que nos deixam de coração na mão. É justo viver assim? É justo viver à parte de um país? É justo viver sem condições mínimas de cuidados? Não precisam de responder suas excelências, eu faço-o por vocês, não é! 

Não é e os senhores bem o sabem, infelizmente vivemos para o amanhã por estes lados, com a dúvida constante do será que consigo e quando se lembram de nós, é sempre tarde demais. Não temos meios de combate a incêndios, é inaceitável num país como o nosso que sofre com uma época de incêndios inexplicável, em 2024 pagámos cerca de 80 milhões de euros pela operação de 70 aeronaves de combate a incêndios, se fizermos as contas (e não há necessidade em ser um grande matemático), cada cl-515 custa cerca de 34 milhões de euros, o que nos dá dois aviões de combate em apenas num ano. Mas aprofundando as contas, segundo dados públicos, cruzados com estimativas fundamentadas em relatórios oficiais e decisões governamentais, o valor despendido num período de vinte anos situa-se entre 700 e 900 milhões de euros, sendo plausível apontar para uma ordem de grandeza próxima dos 859 milhões de euros. Este montante, embora aplicado em serviços essenciais para a proteção das populações e do território, permite uma reflexão incontornável: com o mesmo valor, Portugal poderia ter adquirido cerca de 15 a 17 aeronaves próprias do modelo Canadair DHC-515, equipamento reconhecido internacionalmente como referência no combate a fogos florestais. Esta realidade levanta a questão da sustentabilidade do modelo assente quase exclusivamente em alugueres temporários, em vez da criação de uma frota nacional permanente, robusta e autónoma, que reforçaria a capacidade de resposta do país e reduziria a dependência externa. Com os incêndios a intensificarem-se ano após ano e com a dimensão da tragédia ambiental e económica já evidenciada em 2025, entendo ser do interesse nacional avaliar com urgência se o caminho futuro deverá continuar a privilegiar o aluguer ou, pelo contrário, apostar decididamente na aquisição de meios próprios, que a longo prazo se revelariam mais económicos e estruturantes. São medidas, meus senhores, que como se tem por hábito dizer, “já são tarde para ontem” e dado que não se observam nenhuns avanços a revolta popular sentida seja ainda mais intensa. 

Deste lado, não vos peço que venham apagar os incêndios, duvido que algum dia tenham tido a obrigação de ter de defender algo que está prestes a ser consumido pelas chamas, eu fi-lo, não por mim, mas pelas pessoas pelas quais nutro carinho. Desloquei-me de Vila Soeiro ao Sabugal para ajudar no que podia, para não deixar o fogo levar coisas de pessoas que muitas vezes levaram uma vida inteira a conquistar e que em segundos se tornam cinzas. Como eu o fiz, milhares fizeram-no, levantaram-se do conforto das suas casas, levaram o que tinham e foram ajudar quem mais precisava, com giestas, mangueiras, águas e comida, enquanto estávamos a tentar fazer o melhor que podíamos com as condições que tínhamos não se olha a cores partidárias, aos valores dos impostos nem as leis que têm de ser aprovadas, olha-se uns pelos outros, com um toque no braço para avisar da chama que está a consumir o olival ou o grito de atenção para a passagem, infelizmente tardia do carro de Bombeiros. Não há críticas aos Bombeiros, há entre ajuda, há espírito de equipa e há excelentíssimos a vontade de proteger o que outros querem continuar a ver abandonado. Finda-se o trabalho, a custo, às vezes da própria vida como tivemos a infelicidade de testemunhar este ano e comenta-se a chegada tardia dos Soldados da Paz, não há uma alma que não reconheça o seu valor, que não saiba que não “têm por onde se virar”, explica quem sabe melhor que a culpa não é deles, é de quem os comanda e está em Lisboa. É inconcebível ter profissionais da Proteção Civil a comandar incêndios rurais no Interior do país e isto, Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, é inaceitável. Questiono-vos quais são as valências e conhecimentos que um profissional que dispõe da maior parte do seu tempo sentado num gabinete, tem da geografia do Interior, das estradas que levam ao cume onde lavra o fogo? Não têm, garanto eu aqui. Quem conhece está cá, são os comandantes dos Bombeiros da Guarda, do Sabugal, de Trancoso, do Soito, Gonçalo, Almeida, Celorico da Beira, Fornos de Algodres, Vila Nova de Foz Côa, Gouveia, Seia, Trancoso, Aguiar da Beira, Famalicão da Serra, Melo, Figueira de Castelo Rodrigo, Folgosinho, Loriga, Manteigas, Mêda, Pinhel, São Romão, Vila Franca das Naves e Vila Nova de Tázem, no que toca ao meu distrito. São estes senhores que passam o ano a traçar rotas mais rápidas, a reconhecer o terreno e a estudar as probabilidades possíveis e impossíveis de um incêndio, seja ele na Aldeia Viçosa, ou na Atalaia. São estes senhores que maioritariamente nos defendem e ganham pouco ou quase nada em troca, como é que é possível que em Lisboa se viva bem com isso, aqui defende-se bombeiros assalariados ou com avenças que reflitam o trabalho que têm o ano inteiro, não apenas no verão.  Não se pode continuar assim, a ver pessoas chorar, revoltadas com os incêndios, com a falta de ajuda e de presença de quem nos governa. É do conhecimento público que na época de governação de Ramalho Eanes o mesmo foi apagar incêndios com a população, mas aqui não é isso que vos pedem. Pedem-se medidas rápidas, pede-se para não nos deixarem no esquecimento como quem deixa uma moeda caída no sofá. Pede-se presença, pede-se que não se critique e que se faça igual, como foi feito por sua excelência o Sr. Primeiro-ministro, pede-se um ministério da Administração Pública que dê a cara, que não diga “vamos embora” quando os jornalistas e o povo quer respostas e que não apareça apenas para prestar honras aos caídos. Pedimos encarecidamente que olhem para nós pelo que somos, que reflorestem as nossas Serras e matas antes que o inverno nos bata à porta, que os vigilantes sejam redobrados nos postos de vigia e que deixem comandar quem sabe onde está, que estuda o que se passa e quem vive para proteger o que nos é tão querido. Meus senhores, já referi que não se pede muito, no fundo pede-se liderança como sempre pedimos. Temos o potencial necessário para sermos a melhor parte que Portugal tem, temos vistas incríveis que muito provavelmente nunca viram, aqui não há prédios com 20 andares, há florestas com milhares de hectares. Não temos trânsito infernal, temos cursos de rio e piscinas naturais de outro mundo, não temos de viver numa correria, aqui temos ar puro, animais e uma capacidade para receber quem quer que seja, sempre hospitaleiros, fiéis e fortes. 

Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, aqui sim estamos cansados, batemos em fogos que reacendem mal o apagamos e vemos chamas para onde quer que olhemos. Aqui estamos estafados de andar a salvar o que é nosso e o que muitos abandonam, neste lugar que para muitos só serve para arrecadar votos. Aqui estamos completamente exaustos de fazer aquilo que devia ser feito pelas equipas que nos governam, não entendo como é possível estar cansado depois de ter visto o Interior a arder sentado numa espreguiçadeira numa praia do Algarve e a jantar no Pontal. Entendam, Suas Excelências, aqui não gostamos do desprezo, somos pessoas que se unem quando o mal nos bate à porta, não baixamos os braços quando a luta que não é nossa passa para o nosso lado mesmo que sintamos que estamos entregues à nossa própria mercê, bem como na valentia, coragem e dedicação dos Bombeiros que não têm mãos a medir. 

Julgo que não estamos a pedir muito, pedimos o essencial, que não nos deixem esquecidos, que olhem para nós como parte de um Portugal que deve ser inteiro e não com linhas traçadas que o dividem a nível geográfico, social e cultural. Não somos o que nos pintam nas televisões, somos mulheres e homens íntegros, responsáveis e com um amor incondicional pelo Interior. 

Não nos deem mais motivos para chorar, já nos basta chorar por aquilo que o fogo nos leva. 

Com os melhores cumprimentos, 

 

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