Opinião: André Morais | Precipitação intensa pós incêndio, problema anunciado
Por Jornal Fórum
Publicado em 16/09/2025 17:38
Opinião
 
 

Precipitação intensa em solos queimados, o risco invisível que se transforma em desastre anunciado 

Ainda antes de o verão terminar, já temos em Portugal, segundo o IPMA as primeiras chuvas. O país encontra-se, mais uma vez, perante uma encruzilhada de riscos, os incêndios que devastaram territórios fragilizaram o solo e, agora, cada gota de chuva que cai pode desencadear fenómenos em cascata que ameaçam pessoas, bens e ecossistemas. O que deveria ser apenas uma transição natural de estação converte-se num desafio acrescido para a proteção civil e para a gestão do território. 

 

Um ciclo previsível: do fogo à água 

Os incêndios não destroem apenas vegetação, alteram profundamente a estrutura dos solos e preparam o terreno para novos riscos. O calor intenso cria camadas repelentes à água, reduzindo drasticamente a infiltração. Mas temos mais problemas associados: 

  • Escorrência superficial, a água da chuva deixa de ser absorvida, acumulando-se e correndo rapidamente encosta abaixo. 

  • Erosão acelerada, os solos desprotegidos tornam-se vulneráveis à perda de partículas finas, originando ravinas e transporte maciço de sedimentos. 

  • Perda de coesão, as raízes queimadas deixam taludes instáveis, aumentando a probabilidade de deslizamentos e fluxos de detritos. 

  • Contaminação hídrica, com cinzas e metais pesados entram em ribeiras e albufeiras, degradando a qualidade da água. 

 

Tudo isto é conhecido, estudado e documentado em relatórios científicos, artigos académicos e experiências de campo. Não estamos perante fenómenos desconhecidos, mas sim perante riscos previsíveis que continuam a ser geridos de forma reativa. 

O efeito cascata sobre comunidades e ecossistemas 

O que começa na encosta rapidamente se propaga ao vale, às aldeias e até às cidades. A precipitação em solos queimados gera um efeito dominó que se traduz em múltiplas consequências: 

  • Enxurradas súbitas, capazes de arrastar veículos, destruir estradas e isolar populações. 

  • Movimentos de vertente, que comprometem infraestruturas críticas, desde estradas a linhas de transporte de energia. 

  • Assoreamento de linhas de água, que agrava o risco de cheias em episódios posteriores. 

  • Degradação da qualidade da água, com impacto no abastecimento público e na agricultura. 

  • Perdas económicas diretas, pela destruição de solos agrícolas e infraestruturas. 

  • Impactos psicológicos e sociais, uma vez que populações já afetadas pelo fogo enfrentam de imediato novos perigos. 

 

Em locais como a Serra da Estrela ou a Lousã, este ciclo já foi repetidamente observado. O fogo abre feridas, a chuva, em vez de curá-las, aprofunda-as. 

 

Fragilidades da resposta atual 

Apesar do conhecimento acumulado, Portugal continua a atuar tardiamente. 

  • Avisos meteorológicos genéricos, o IPMA emite previsões e avisos que são replicados ela proteção civil municipal quase sem adaptação. O resultado é uma informação demasiado ampla para ser útil a quem precisa de agir localmente. 

  • Escala territorial inadequada, os riscos variam dentro do mesmo concelho, mas raramente são comunicados à escala da freguesia. 

  • Ausência de medidas imediatas, entre o incêndio e a primeira chuva, existe uma janela crítica para intervir, mas quase nunca se assiste à consolidação de taludes, instalação de barreiras ou aplicação de técnicas de bioengenharia. 

  • Comunicação pouco orientada para a ação, fala-se em “chuvas fortes” e “risco de inundações”, mas não se traduz essa informação em instruções claras para autarcas e cidadãos. 

 

O resultado é um vazio de preparação. Populações ficam apenas “avisadas”, mas não ficam capacitadas para agir. 

 

O que poderia já estar a ser feito 

Ainda que não seja possível transformar radicalmente a paisagem em poucas semanas, existem medidas práticas e técnicas que podem e devem ser implementadas de imediato: 

  • Consolidação de taludes com recurso a estruturas provisórias, madeira ou outras. 

  • Técnicas de bioengenharia, como dispersão de resíduos vegetais. 

  • Barreiras de contenção em linhas de água, para reter sedimentos e cinzas antes de chegarem a cursos principais. 

  • Monitorização da qualidade da água, com campanhas reforçadas de análise em zonas críticas. 

  • Planos de comunicação diferenciada, direcionados para freguesias específicas, com cenários de 24 a 72 horas. 

  • Mobilização comunitária, através de juntas de freguesia e voluntariado organizado, para limpeza de valas e proteção de infraestruturas locais. 

 

Cada uma destas ações é tecnicamente viável, financeiramente acessível e operacionalmente exequível. O que falta não é conhecimento, mas vontade e planeamento. 

 

 

 

A importância da literacia de risco 

O problema não é apenas técnico. É também social. Uma comunidade informada e preparada pode reduzir significativamente os impactos destes fenómenos. Mas para isso é necessário que a comunicação vá além dos avisos generalistas: 

  • Explicar o que pode acontecer em cada território. 

  • Indicar ações práticas que cada cidadão pode tomar. 

  • Capacitar autarcas locais para analisar riscos básicos e mobilizar recursos comunitários. 

  • Utilizar linguagem clara, sem alarmismo, mas que transmita a urgência das medidas preventivas. 

 

O caminho para uma cultura de prevenção 

Portugal precisa de transitar de um modelo reativo para um modelo proativo de proteção civil. Isso significa: 

  • Integrar ciência e decisão política, aplicando dados de sistemas de informação geográfica e probabilidades meteorológicas à escala local. 

  • Planeamento faseado, que diferencie riscos por freguesias e não apenas por distritos. 

  • Reforço da cooperação institucional, entre Estado, municípios, freguesias e entidades académicas. 

  • Investimento em medidas imediatas pós-incêndio, para mitigar os primeiros impactos das chuvas. 

  • Adoção de uma cultura de literacia em riscos, em que cidadãos e comunidades entendem que a prevenção também depende deles. 

 

Conclusão 

Os incêndios não são o fim do problema, mas apenas o início de uma nova fase de vulnerabilidade. A chuva que chega logo a seguir não é apenas o alívio que todos desejam, é também o gatilho de novos riscos. Portugal não pode continuar a esperar que os fenómenos se repitam para depois reagir. É tempo de antecipar, planear e agir. Cada precipitação intensa em solo queimado é previsível. Cada enxurrada que arrasta estradas, cada aluimento que atinge habitações, cada curso de água contaminado poderia ter sido mitigado com medidas simples. A diferença entre desastre e resiliência está, muitas vezes, na decisão de intervir a tempo. Se quisermos verdadeiramente proteger pessoas, bens e ecossistemas, precisamos de romper o ciclo de “esperar para reagir” e avançar para uma lógica de “prever para prevenir”. Só assim deixaremos de assistir, ano após ano, a desastres anunciados. 

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