Chegou setembro! Finalmente o jornal volta às bancas e eu volto a escrever, verter ideias que terminarão impressas no papel, como reza a tradição. Em que pese toda a tristeza que tivemos de conviver no passado agosto, pois ainda há pessoas que apreciam o fogo de maneira doentia, o verão é tempo de buscar a sombra das árvores e, se calhar, a água dos rios. O lamento fica quando o que nos protege do sol, arde, e o que nos refresca, não seja o suficiente para apagar os fogos.
É bem verdade. Quase tudo o que precisamos para bem viver está na natureza, que sempre foi fonte de inspiração para muitos filósofos antigos. Tales de Mileto (600 aC), por exemplo, dizia que a água dava origem a todas as coisas. Quando densa, transformava-se em terra, quando aquecida, em vapor e, ao resfriar-se, retornava ao estado líquido. Um ciclo eterno, de novas formas de vida e evolução que desenvolviam-se para dar origem a todas as coisas existentes.
Mesmo depois de tanto tempo, a sabedoria de Tales ainda pode ser observada ao percebermos que a vida humana é semelhante a um rio. Do sol quente que transforma a água em vapor, sublimam diminutas gotículas d´água ao céu. Lá em cima, no ambiente adequado da alquimia celestial, transformam-se em pequeninas gotas, como no momento de nossa conceção, porque um dia já fomos uma diminuta gota. Assim começa a vida humana e assim nascem os rios, cuja gestação dá-se no ventre da terra, até brotar e ver a luz.
Há rios que nunca secam, mesmo diante da mais longa estiagem. Geralmente são os mais profundos. Fazem história. São como as pessoas de vida longa e de boa saúde. Há rios rasos, que passam pela existência sem resistir ao calor do sol. Nem por isso deixam de marcar seu trajecto. Basta chover novamente para que reapareçam, como aquele bom e velho amigo que, de uma hora para outra, ressurge em nossa vida.
Os rios parecem ter uma sabedoria natural. Desviam dos obstáculos, sempre à procura do melhor caminho, como se soubessem para onde ir, como se respeitassem a um propósito divino. E por falar em obstáculos, não raro encontramos rios que apresentam interrupções em seu curso. Pequenas ou grandes, como as vicissitudes da vida, as quedas d´água são como as situações inesperadas. Fazem a água voltar ao estado gasoso tão logo despencam. As gotas que resistem, chocam-se contra as pedras, vaporizam-se novamente, buscam força, unem-se e seguem o caminho, como se juntassem os próprios pedaços.
Quem nunca conheceu alguém que passou por grandes tribulações? Gente que encontrou o abismo. Como a teoria de Viktor Frankl (sobrevivente do holocausto) há sempre uma busca de sentido, uma força interior que nos leva a vencer obstáculos, mesmo quando, diante de nós, não é possível saber o caminho. Aqueles que não esquecem a vitalidade, a força superior que nos rege, são os que geralmente perseveram como os rios. Transformam um acontecimento traumático em um belo exemplo de superação. É a estética da natureza refletida em nossa própria existência.
Assim como a vida, os rios têm muitas facetas. Há rios serenos, largos e abundantes. Como o Tejo, que atravessa longas distâncias, move usinas de energia e é navegável por longos trajectos. Mas há também aqueles que quando encontram o fim, parecem resistir e não saber para onde vão. Vejamos o exemplo do Rio Vouga, que antes de derramar-se nas águas de Aveiro – para só então renascer - dá origem a um delta. Cria um emaranhado de pequenas ilhas, fragmentos de terra por ele cercado. Como alguns idosos, não encerram o seu curso sem antes preocuparem-se com os bens materiais. Ramificam-se, quiçá, numa resistência à renovação, à sua própria ressurreição.
E o que dizer dos rios pequeninos? São exemplo de como a ação humana lhes muda o lugar. De qualquer jeito, não deixam de ter vida, de ter origem e destino, início, meio e fim. Há rios, riachos, sangas, córregos e arroios, que sabe-se lá quantos outros nomes podem ter. Por serem pequenos, são mais vulneráveis à ação humana. Desmatamento ciliar, poluição com resíduos, dejetos, tal e qual nós, seres humanos, costumamos fazer como nossos próprios corpos.
Por mais que muitos queiram ser como os grandes rios, a vida nem sempre reserva acontecimentos célebres para quem nasce à Terra. Todavia, dois rios brasileiros, Negro e Amazonas, dão um contorno à parte. De tão imponentes que são, acabam por ser arrogantes. Não conseguem misturar suas águas quando se encontram. O interessante fenómeno, atrai muitos turistas àquela região, mas o que na natureza é belo, na vida humana pode não ser. É como o encontro de duas pessoas excêntricas. Cada uma com sua vaidade. Impossível misturarem-se, porque a soberba pertence aos arrogantes, aos opulentos.
Mas não adianta. Por maior que sejam, por mais beleza que possam ostentar, com ou sem fama ou importância, os rios – todos eles – terminam de alguma forma. Como a vida humana. Nascem, crescem, às vezes ficam gigantes, às vezes secam e às vezes morrem antes da hora. Não importa o tamanho, a importância, a fama. Todos têm o curso limitado. No meio do caminho, é preciso ter serventia, e a exemplo dos rios, devem abrigar peixes, dar vazão às chuvas, regular a temperatura do planeta, entre tantas outras atribuições que a natureza requer. E você? Sabe qual é o rio da sua vida? Observe o seu curso e talvez consigas descobrir qual será o vosso final.