Opinião: Ivo Carlos | Ao Exmo. Sr. Primeiro Ministro Luís Montenegro.
Por Jornal Fórum
Publicado em 27/08/2025 14:33
Opinião

Ao Exmo. Sr. Primeiro Ministro Luís Montenegro.

Exmo. Sr. Primeiro Ministro, escrevo-lhe esta carta na esperança de que o meu testemunho o sensibilize de alguma forma. Acredite que, também eu, sou um homem que dá primazia à razão, mas nunca me esqueço que são os sentimentos o sal da vida. O interior do país enfrenta uma das maiores catástrofes de que há memória, e enfrenta-a sozinho, sem um líder, sem uma orientação, sem um responsável que dê a cara por aquilo que está a acontecer. Digo-lhe, a razão é o que faz traçar o plano de ação, mas a urgência, a rapidez de movimento e tomada de decisão são fruto da preocupação, do envolvimento e da paixão. É isso que lhe falta, e falta-lhe muito mesmo.

Ninguém é contra a que o Sr. Primeiro Ministro tire férias – isso que fique bem claro - e, de certeza que ninguém melhor do que o senhor saberá se se devem acionar os mecanismos de proteção civil locais, nacionais e europeus, mas ignorar os apelos dos autarcas e dos cidadãos, isso sim, é imperdoável.

Confesso que, quando em julho o extremo norte do país estava a arder, não me preocupei assim tanto. Como sempre, confiei no Estado e nas entidades estatais, na Proteção Civil, nos Bombeiros, na GNR, e nas outras estruturas (que vão sendo criadas, desmanteladas, reorganizadas, extinguidas e renascidas de mandato para mandato) e pensei: “daqui a pouco já tudo ficará extinto. Há meios, há experiência, há relatórios dos anos anteriores, este ano vai ser diferente”. Infelizmente enganei-me. Iludi-me. Novamente, confiei.

Ao ver o Parque Nacional da Peneda Gerês a arder desde o dia 26 de julho até ao dia 3 de agosto esperei por alguma comunicação sua ao país, esperei eu e quase todos os portugueses que assistiam à desgraça através da comunicação social… e bem que podíamos esperar… sentados. As únicas perguntas que me ocorriam eram: “Como é possível um Governo ver arder um território que é considerado pela UNESCO como uma Reserva Natural da Biosfera e permanecer em silêncio? Será que não tem noção da flora endémica e rara que lá se encontra e é preciso preservar? Será que não sabe que lá existe fauna típica e ameaçada? Será que não tem noção de que lá também existe património histórico-cultural deixado ao longo dos vários períodos de ocupação humana?”, mas depois de ver ignorado o apelo do Sr. Presidente da Câmara de Ponte da Barca em que era pedido que fosse acionado o Mecanismo Europeu de Proteção Civil tive mesmo a certeza de que, nem a fauna, nem a flora, nem o património histórico-cultural, nem sequer os habitantes das aldeias que estão no interior do parque são coisas, animais ou pessoas que interessem salvar. Confiamos no Estado, revalidámos o Governo, e a paga que nós temos é sermos ignorados, reforço, ignorados completamente, num momento de aflição – deixo bem claro que o plural que aqui é utilizado é-o apenas num sentido democrático.

No final de julho e princípio de agosto o cenário já era grave e, por detrás da cortina de fumo, já se ouvia falar em 2017. Faço um parenteses para informá-lo de que os Cidadãos não se esquecem tão rapidamente do flagelo dos incêndios (como é que é possível esquecer uma realidade que é vivida por nós ano após ano?) mas os governantes, talvez por estarem de peito cheio com os resultados do 3.º Relatório Provisório de Incêndios Rurais de 2025, onde é referido que “[quando] Comparando os valores do ano de 2025 com o histórico dos 10 anos anteriores, assinala-se que se registaram menos 27% de incêndios rurais e menos 1% de área ardida relativamente à média anual do período”1, talvez se tenham esquecido de que Portugal, anualmente, arde, e arde muito. Retomo, no final de julho e princípio de agosto o cenário já era grave. Por aqui, entre os Cidadãos, a consulta do site Fogos.pt era diária, ou melhor, horária, não fosse o diabo tecê-las e aparecer um outro incêndio de grandes dimensões à nossa porta. E não apareceu, é verdade. Apareceu um incêndio em Piódão a 13 de agosto e que se alastrou a Oliveira

 

1 https://www.icnf.pt/florestas/gfr/gfrgestaoinformacao/grfrelatorios/areasardidaseocorrencias

do Hospital. Por esta altura já deve ter percebido que não sou nem de Ponte da Barca, nem do Piódão, nem de Oliveira do Hospital, por isso, e uma vez mais, fiquei a acompanhar a evolução do incêndio à distância. Impressionei-me com o testemunho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital que no dia 15 de agosto, dois dias depois de ter sido dado o alerta para o incêndio de Arganil, cedeu aflito àquilo a que assistia: à evolução descontrolada de um incêndio que havia começado há dois dias.

Relembro que, neste ponto, o país já tinha assistido a vários incêndios no interior, já havia cansaço acumulado das populações das pequenas aldeias que, pelas piores razões, apareciam no mapa e nas televisões, estávamos todos a enfrentar uma onda de calor há várias semanas, com temperaturas a alcançar os 40ºC, e o Governo permanecia em silencio. Se, sobre o incêndio do Parque Natural da Peneda-Gerês, nem uma palavra se tinha ouvido por parte do Governo, por que motivo esperava eu que um incêndio numa das Aldeias Históricas de Portugal iria acordar o inerte adormecido? Talvez só com uma morte. E foi o que aconteceu. Lamento dizê-lo Sr. Primeiro Ministro, mas foi preciso morrer um bombeiro da Covilhã para que o Governo desse sinais de vida e para que o Sr. Primeiro Ministro começasse a aparecer.

Para termos contexto, este bombeiro perdeu a vida quando se dirigia para uma frente de fogo na Quinta do Campo, Fundão, frente de fogo que mais não era do que uma projeção do incêndio que havia começado no Piódão, há 4 dias, tinha-se deslocado para Oliveira do Hospital, e agora descia em direção a Castelo Branco, ao Fundão e à Covilhã. Nessa noite, recebi a notícia da morte do bombeiro no grupo de WhatsApp da minha família e, ao mesmo tempo, recebia mensagens no grupo do trabalho que diziam: “[…] Devido ao grande incêndio de Piódão, que se aproxima das freguesias da Covilhã e do Fundão, o ar encontra-se cheio de fumo”; “A minha Casegas está toda a arder”; “O incêndio já chegou ao Paul”. E, agora sim, era a minha vez de ter um incêndio à porta.

O dia seguinte foi passado a ver, um por um, os meus colegas de trabalho a contactarem os familiares para saber se estavam bem. Foi passado a ouvir relatos de como tudo era verde, estava limpo, tratado, cultivado, e mesmo assim o fogo não dava tréguas: “Olha, as cerejas que tu comeste este ano… já não as vais comer mais”; “Olha, as cabras e os animais que andaram a reintroduzir na floresta já começam a aparecer carbonizados”; “Olha, já tenho lá os meus tios a apagar o fogo, sozinhos”. O Fogos.pt não atualizava a área ardida há dias, mas, lá se descobriu que o Google Maps tem uma opção que permite ver os incêndios florestais. “Então e os aviões da Suécia? Por este andar quando for para voarem já o fogo está apagado” – mal sabíamos nós… E assim se passou um dia. No dia seguinte já se tinha percebido que o incêndio continuava desgovernado, já havia subido em direção a São Vicente da Beira (Castelo Branco), já tinha passado pela Enxabarda e pelo Castelejo (Fundão) e estava a chegar ao Peso (Covilhã) e isto não era seguido, era em simultâneo. Escusado será dizer que neste dia, os colegas que não tinham ligado aos familiares no dia anterior, ou que não tinham ido para as aldeias apagar o fogo, acabaram por ter que ir, e os meios suecos de combate aos incêndios não faziam moça sequer.

Entretanto sabe-se que o Sr. Primeiro Ministro comete o segundo erro grotesco. Dá as suas condolências à família do Bombeiro falecido através de uma rede social. Ora, um homem que todos procuram há mais de um mês, que está na praia enquanto o seu país arde, fala através de um meio de comunicação tão impessoal e irrisório para prestar as condolências pela morte de um Cidadão que se dirigia para ir combater um incêndio que já havia provocado feridos e que estava a dizimar por completo as estatísticas do Relatório Provisório de Incêndios Rurais de 2025? Sinceramente, não sei mesmo o que é mais ridículo. Se um homem cantar vitória antes do tempo (atualmente Portugal é o país com maior área ardida da União Europeia), ou se um homem tentar corrigir um erro gravíssimo com uma solução ainda pior.

Ontem foi dia 20, ao meio-dia, o incêndio – já ninguém sabe se é de Arganil, Oliveira do Hospital, Pampilhosa da Serra, Castelo Branco, Fundão, Covilhã ou Seia – era combatido por 19 meios aéreos. Às 21h, esse mesmo incêndio ameaçava os habitantes da Soalheira. O meu sogro, desesperado, lá se enfiou por um atalho para conseguir entrar na Soalheira para ir salvar a sua mãe (de 94 anos) e a sua irmã. Esteve com a família a apagar o incêndio, a freguesia apelou em MAIÚSCULAS para que ajudassem a salvar a igreja (se não sabe, fica a saber, a religião e a fé aqui são muito importantes e valorizadas e as pessoas valorizam os seus símbolos, santos e rituais com uma força que já não se vê em lado nenhum), eu, a sua filha e sua esposa assistíamos impotentes às imagens que nos chegavam pela televisão. Uma aldeia cercada pelas chamas, com os habitantes a dar o tudo por tudo para que as casas fossem salvas. E foram! E foram! Sr. Primeiro Ministro, esqueci-me de lhe dizer uma coisa, esta aflição foi vivida pelos familiares do Bombeiro que morreu, aquele a que o Sr. foi ao funeral, mas que não ficou para ver mais nada. O Peso foi igualmente engolido pelas chamadas e, pergunto, o que acha disto? Um bombeiro que morre a caminho de um incêndio é sepultado numa aldeia que, na mesma tarde, é engolida pelo mesmo fogo.

Este relato já está extenso, mas não tão extenso como a área ardida. Se os parques naturais não interessam e são para deixar arder, se as aldeias históricas (Piódão, Trancoso, Castelo Rodrigo, Sortelha, Castelo Novo) não interessam e são para deixar arder, se os habitantes do interior (que ainda esta semana ouvimos dizer que são velhos, pobres e doentes mentais) não interessam, são para fazer o quê?

É urgente agir, olhar para o terreno, comandar, ordenar, entregar o que fazer a cada um e assumir o seu papel, as suas responsabilidades. Ninguém lhe impede que vá de férias, ninguém o manda apagar fogos, ninguém o manda conduzir máquinas de rasto, mas as pessoas exigem reconhecimento, apoio, orientação e motivação, mas, e principalmente, cuidado com o que diz e como se apresenta. Os cidadãos estão cansados, os bombeiros estão cansados, as forças de segurança e proteção civil estão cansadas, mas quem voltou de férias não pode estar. O Governo e os governantes não podem estar cansados, ainda para mais, se o Governo está a encarar a calamidade que hoje se vive como se fosse uma guerra. Um incêndio não é uma guerra, mas pergunto, se fosse, os Cidadãos estavam a combater sozinhos? O General aparecia já a meio da ofensiva? A correr atrás de um prejuízo? Acompanhado por um corpo de outros capatazes que se dirigem ao Povo como quem está a dar um ralhete? Termino Sr. Primeiro Ministro, sem esperanças de algum dia ter uma resposta a esta carta,

mas deixo ainda um alerta: Eu sou algarvio, estou habituado a ser esquecido (talvez por isso é que me identifico tanto com o interior), mas não vou deixar que se esqueça de uma coisa, estamos a 21 de Agosto, o maior incêndio que houve no Algarve, com 70.000 hectares de área ardida, foi a 10 de Setembro de 2003, portanto, há 22 anos. Acredite que a memória do Povo recua até essa data e, 22 anos passados, todos os habitantes da Serra de Monchique ficam com o coração nas mãos quando chega o Verão. Por isso, o problema não é novo, e já está mais do que na altura de ser humilde, assumir os erros, e encontrar uma solução para isto que se vive todos e todos os anos.

Atentamente,


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