Para contar a história de Brian Wilson, não basta uma simples crónica. Seriam necessários volumes longos, divididos em tomos. Toda esta longa obra se multiplicaria infinitamente caso considerássemos os seus pensamentos, alucinações visuais e, principalmente, auditivas. A história de um génio, por vezes «self-entitled», a história de um visionário, a história de um irmão mais velho, a história de um viciado, a história de um doente mental, a história de uma vítima, a história de um grande homem, que nunca perdeu o sentido de humor, nem a inocência jovial no trato, perante as ásperas circunstâncias da vida.
Filho de Murry Wilson, escritor de letras para música ligeira, desde cedo soube o sabor do cinto, recordando, anos mais tarde, a irritação, física e mental, que lhe causava. A imiscuidade do pai no estúdio deu disciplina aos criativos Beach Boys, mas cedo quebraram com a vigilância constante do Big Brother Murry. O mais velho dos três irmãos era Brian. Escolheu o caçula Carl para seu companheiro de banda, indo de atrelado, por obrigação da mãe, o irmão do meio, Dennis, considerado cabeça oca por Brian – cedo se tornariam dois grandes pilares de amizade e companheirismo. Juntaram-se os amigos Al e David, constando que foi este último, ainda que se afastasse do grupo posteriormente, a empurrar definitivamente Murry para longe da banda. E havia o primo Mike, com personalidade e ego marcados – surgiriam daqui as grandes disputas pessoais e legais entre os membros da banda, o que é publicamente visível no discurso de aceitação deste último à introdução dos Beach Boys no Rock n’ Roll Hall of Fame em 1988. Nota também para Bruce Johnston – ainda não tinha aparecido nesta altura.
A competitividade interna à sua mente não lhe permitiu apreciar cabalmente, durante décadas até, o brilhantismo da sua criação. A luta, real, mas altamente exagerada, com Paul McCartney, em busca de alcançar o cume da invenção, foi motivo de abismo pessoal…mas também de beleza musical sem igual. A patologia mental, multiplicada pelo consumo excessivo de substâncias ilícitas, quase nos fez perder um génio cedo. O oportunismo logo tomou o rosto do Dr. Eugene Landy, com um método psicoterapêutico imersivo que rapidamente se transformaria numa tranche choruda da herança do ainda vivo Brian. O primo não ajudou. Ainda hoje não se sabe ao certo, materialmente claro está, quem escreveu os grandes êxitos que lançaram os Beach Boys, na década de 60 para o topo das bandas americanas. Foi aí que o primeiro choque ocorreu para Brian – os Beatles no Ed Sullivan Show e a invasão britânica -, arremessando os californianos para longe da sua prancha, caindo no grande mar…pelo menos na sua única perspetiva.
As maiores perdas não foram essas, contudo. A lei da vida manda que os mais velhos vão na frente e que os mais novos observem, aguardem, se transformem nos mais velhos e, por fim, os sigam. Os irmãos Wilson, tão únicos em tudo, contrariaram, de novo, esta tendência. Primeiro foi Dennis. Afogado. Não deixa de ser irónico. As grandes produções de clipes de música relacionadas com o álbum Pet Sounds, para darem materialização visual aos sons de Good Vibrations e, principalmente, Sloop John B, não contavam com a presença de Dennis, talvez por estar ele a segurar a câmara. No clipe desta segunda música, os membros brincavam com um barco insuflável numa piscina. Tragicamente, anos depois, seria esse o fim do irmão do meio. A luta do irmão mais novo foi menos imediata e mais penosa. O cancro crescia no seu pulmão. Consumia o seu interior. Culminou na sua morte, sendo Carl sempre lembrado pelo seu bom humor e amizade, recheados de humildade e simpatia.
Ficou Brian, sozinho, mas acompanhado. Connosco, mas no seu mundo. Depois de mais umas décadas de ligeira lucidez, vinha a demência. Foi a consequência da morte da sua companheira Melinda, no ano passado. A atenuante da dor, a companheira diária na velhice, abandou-o. Brian Wilson faleceu a 11 de junho de 2025. As causas da morte foram recentemente apuradas. Nada de chocante. Quero acreditar que partiu em paz, a ouvir a sua música. Mas fico com a certeza que apenas vimos (ou melhor, ouvimos) um grão de areia do que Brian ouviu. Que descanse em paz, hoje e sempre.
