Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Dona Maria Jesus Dá Mesquita e as Doroteias Voltar

24 de Julho de 1924. As Justiças da Comarca da Covilhã descem a Rua da Maria da Fonte. O casario transpira. O aparato processual impressiona. Dissolve-se no calor que sufoca. As poeiras africanas toldam de um castanho sanguíneo os céus da Cova da Beira. Três moles pancadas acordam Maria Jesus Dá Mesquita e Almeida. O zeloso escrivão arrola a casa. Com dois andares, loja e sobrado, que não tem número de policia. A norte, embeiça com herdeiros do Dr. Joaquim Urbano de Figueiredo.

As gentes da casa tentam mostrar a escriturazinha da compra e a nota do registo na Conservatória. A Justiça, surda e cega, não quer saber daquele papelito amarelado, muito amarrotado. Nomeia depositário o mano da Maria Jesus. Alfredo Dá Mesquita, ainda vergado pela modorra do almocinho, alomba com a obrigação legal. Ignora-se a razão da preferência da Comissão Jurisdicional dos Bens das Extintas Congregações Religiosas. As Justiças entregam a Dá Mesquita o oficio de fls. 2 dos autos.

Rezava assim a papeleta oficial:

“Tendo-nos constado por informação dos funcionários desta Comissão que há pouco foram em serviço a essa cidade, que existe, na Rua Maria da Fonte, um prédio congreganista, que não foi oportunamente arrolado. Arrole-se agora”.

Os decretos de 8 de Outubro de 1910 e Portaria de 19 de Janeiro de 1911 arrematam a questão! Mas, que raio! Nem o auto, nem o oficio identificam o tal o prédio, que dizem inimigo da república. Quem seria o bruxo, que na molhada de casas e casinhas, o descortinou e escolheu?

Afinal, a culpa já estava retratada. A casita é pertença de Dona Amélia Mendes Alçada, irmã professa da Congregação das Doroteias, que a arrendou à Dona Maria Jesus Dá Mesquita. A Mendes Alçada vestiu o hábito a 16 de Dezembro de 1869 e faz votos simples em 11 de Abril de 1872. Mas a Comissão, que catava bens da Igreja, não tem documentos. Não consegue averiguar da naturalidade e filiação da Irmã Professa. É certo, que transpira pelas ruas da cidade fábrica e o senhor Director do Arquivo das Congregações também o sabe, que a Ameliazinha pode pertencer à grande família Mendes Alçada.

Mas, este ofício dá-nos uma mera informação. Com menos valor que o depoimento de uma testemunha. Não foi prestada com as seguranças e cautelas que a lei exige para as testemunhas. Os tribunais portugueses não se atrevem a beber as suas decisões em semelhante escrito particular. Seria o senhor Director do Arquivo a decidir o pleito!

Afinal, o papelucho até é altamente eloquente. Para provar, que o Estado laico e desancador da religião, à falta de razões e da verdade, faz romance! E desta vez tem graça. É um romancista, muito ilustre por sinal, quem passa a certidão com tal informação. Até parece que o senhor Aquilino Ribeiro, Director Interino do Arquivo das Congregações, estava a contar o seu “Romance da Raposa”. Esse escritor que cresceu numa aldeia no Norte de Portugal e conhece bem os animais. A raposa até roubava ao “bicho-homem” as “galinhas parvinhas”. A “raposa” muito esperta e comilona, que não gostava de hóstias, vinho do Porto e das Doroteias! O Estado em lugar de provar que Dona Amélia Alçada é freira de qualquer ordem regular, entretém-se a copiar de um livro a natureza do voto de pobreza no Instituto das Irmãs de Santo Doroteia, em 1889.

Almeida Eusébio, advogado “pro bono” da arrolada, aproveita e desanca no Borges Grainha. Um fulano que detestava os padres e foi o único herdeiro de um tio, muito católico, muito jesuíta, que o jornal a “Sentinela da Liberdade”, infernizava! Sobrinho que todo o país conhece pelo ódio contra tudo que cheirasse a bentinhos, rosários e afins. Já morreu esse célebre livre pensador e maçon, autor da “História da Maçonaria” e de “Os Jesuítas”. Um ingrato aluno da Companhia de Jesus que aproveitou as luzes que ali recebeu como noviço, para caluniar os seus mestres e educadores.

Na Maria da Fonte, Camilo Castelo Branco envolve na escrita os manos padres: -O irmão, (XV) Doutor João Rodrigues Grainha (1816-1892), formou-se em Direito em 1846 e estudou Teologia, mas não alcançou a celebridade do Dr. Francisco que além de político muito influente, era um médico distinto sem esquecer a sua vida sacerdotal. Dizia o meu avô paterno Prof. Claudino Dias Agostinho e Rosa que privou ainda muito com ele que só em Coimbra o Dr. Grainha se convertera quando estudante de Medicina; atribuía-se a mudança de vida às suas relações com os Jesuítas. Antes da formatura ainda assinara na Covilhã o auto de aclamação de Dona Maria II, quando depois foi sempre miguelista e como tal duramente perseguido.”

Ao que chegámos. O Estado a tentar condicionar o rumo da Justiça! Na tese deste bastava provar:

- Já que fizeste voto de pobreza…são nossos todos os teus bens particulares!

Nunca o roubo teve tão brilhante justificação. Nem quando se praticava nas encruzilhadas à boca negra de um bacamarte! Mas a valente Republica Portuguesa não se mete com o Colégio do Bom Sucesso de Lisboa. Por esta razão única e simples. É inglês e viveu sempre à sombra da bandeira da Grã-Bretanha. Aí se acoitaram as respeitabilíssimas freiras inglesas a educar e a ensinar meninas e a observar a sua regra. Já no Colégio da Covilhã, instituído ao abrigo do Decreto de 18 de Abril de 1901, a música é outra! Como eram portuguesas, nacionais desprotegidas, foram a suas proprietárias e professores expulsos e confiscado o edifício!

Bem, a prosa dava para um romance, mas é preciso atalhar os autos. A 10 de Fevereiro de 1930, o escrivão Manuel Almeida Ribeiro entrega a Dona Maria Jesus Dá Mesquita, na pessoa do seu advogado, o prédio que lhe fora arrolado. Quase seis anos depois da descida acalorada da Rua da Fonte. Quando se catavam os bens das Doroteias!

- 12 set, 2023