Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

As frangas do reverendo padre Presunto Voltar

Sucedem-se uns formosíssimos dias de Outono. Começam a acumular-se sobre o Côa os nimbos percussores da mudança de tempo na região da Cova da Beira. Fala-se muito da linha férrea da Beira Baixa, que o Povo já chama a “linha da fome”, como para significar a penúria no pagamento dos salários e a estreiteza nos meios de por com arte e solidez as obras em andamento. Vista do outro lado do túnel, será mais a linha da abundância, mas só para as companhias e sindicatos que apanharam em primeira mão a concessão e a vão passando, esburgada, aos diferentes empreiteiros e subempreiteiros! Andam agora estudando uma nova variante entre a ponte de Belmonte e as imediações da Covilhã. Pretende abandonar a recta do traçado da variante que toca no Teixoso e em Orjais, atravessando a bacia do Zêzere e fazer um desvio para a Quinta do Rio, constituída por casas, capela, terras de regadio e pão, pomar e vinha. Os seus rendimentos foram arrematados no ano de 1837 por Luís Ribeiro, pela quantia de cento e oitenta mil e quinhentos reis. Agora, pertença do sr. Marques de Paiva, aí se projeta a estação que vai servir Caria e Teixoso. O sr. Marques de Paiva ficará eternamente grato!

Fala-se do tenebroso assassinato do administrador de Vila Velha, Francisco Gomes Ruivo. Foi ferido no coração com uma navalha espanhola! Parece o formidável caso do estripador de mulheres que tem causado o assombro e o terror de Londres! Publicou a “Pall Mall Gazette” uma carta de uma senhora portuguesa, dizendo que há 53 anos, seu avô, juiz na Covilhã, condenou um assassino que matara 16 mulheres, todas com uma punhalada na barriga, confessando que não tivera com isso outro fim, senão ter o gosto de contemplar as contracções da fisionomia das suas vitimas, durante a agonia!

O reverendo Inocêncio Pereira Presunto manda na Igreja de Santa Maria Maior, impõe-se aos seus paroquianos! Ama as suas frangas, bonitas, formas avantajadas e…. Boas poedeiras! Só havia um “petit” problema! O colega abade embirrou com o seu cacarejar e as suas penas coloridas! Não o deixavam dormitar, trocava as voltas ao terço, mexiam com a sua saúde mental! Bem que tentou convencer o reverendo Presunto a fazer uma saborosa canja e um arroz malandrinho! Ele levava a boa pinga do Tortosendo! Deixou-o entupido com um não redondo! A contenda passa para as mãos da autoridade. O Administrador, bacharel em direito José António da Cunha, dá ordens aos seus polícias, para removerem os galináceos, que tanto incomodavam S. Ex.ª., ordena-lhes, por ofício, que vão cantar para outra freguesia!

Nesse dia, tem lugar o mercado semanal. A afluência das freguesias enchia o mercado e as ruas com lojas de venda ao público. O estabelecimento do Luiz António de Carvalho reforçara o seu aviamento de fazendas de lã e mercearia. A loja do Constantino dos Santos Silva estava à pinha! Provava-se a cerveja da pipa. “A ella! A ella!” rezava o anúncio d´”O Covilhanense”. A praça do pelourinho enfrenta a sua enchente, um “bruaá” de carroças, cavalgaduras, vendedeiras, oportunistas. Nas tabernas apinhadas falava-se muito e os vadios, afreguesados à cidade, tentavam levar a sua carreta ou choramigavam alto a sua pobreza, na esquina da Rua Direita.

Davam-se os últimos retoques no novo hotel do sr. Castela, sito ao Pelourinho, com abertura prevista para o 1.º de Janeiro. José Maria Veiga da Silva Campos e Mello era o novo presidente da “Associação Protetora da Infância Desvalida”, agora com o título de “Real”. Estava à conversa com António Franco na Padaria Central. Petiscavam uns pãezinhos fofos com umas lascas de presunto embrulhadas em ovo. O proprietário da Farmácia Moderna não parava de falar, está eufórico! Acaba de obter patente de privilégio, como inventor do “Callicida”, específico excelente para a cura radical dos calos e para o engordamento do seu pecúlio! Ri-se muito! Conta ao amigo a noticia do proprietário da Fabrica Velha sente-se cansado, abandonado pelos amigos. O Manuel Mendes Veiga já não vive na Covilhã, fez-se agricultor ao pé de Lisboa!

Enquanto isso, o Dr. João das Neves, que saía do seu escritório de advocacia para dar um saltinho ao Tribunal – andava a preparar o caso da sr.ª Raquel, criada do sr. Padre Grainha, por ter arrancado parte da orelha direita a Ana de Jesus, já considerado o julgamento mais mediático da Covilhã -  apercebe-se da dupla, muito encafuada na conversa, sentada junto à banca dos ovos.  Sabe que está em falta com o industrial de lanifícios, tenta escapar-se para a rua 1.º de Dezembro, a rua mais central, de maior trânsito e de mais comércio da cidade! Ainda não levara ao escrivão Melo, a ação comercial contra o mestre de tecelagem, da empresa Campos Melo & Irmão, Felix Lanné, cidadão francês, que tinha roído “a corda” ao contrato assinado havia três anos, passara-se para a concorrência!

De repente, um burburinho na rua que sobe em direitura à Câmara, gente que olha espantada, que se arreda para os passeios! Os cornetas, ofegantes, subiam às eminências, embocavam a tuba para chamar os soldados às armas. O tumulto belicoso trepava a praça, afrontava mesmo a Justiça, trancada no velho edifício filipino, invadia a cidade. As colunas e os pelotões com os seus comandantes à frente, iam marcialmente ocupar os pontos estratégicos. São os do 21! Até parecia que os franceses estavam de volta!

Afinal, tratava-se da campanha das frangas! As galinhas que os dois religiosos disputavam e por causa das quais os zelosos fregueses entenderam dever esmurraçar e metralhar, com as armas de Santo Estevão, os zelosos polícias municipais. Que muito inteligentemente, abandonaram o abade à sorte das frangas! Felizmente perceberam que tinham dado com a verruma em prego! Com a mediação do Reverendíssimo Bispo da Guarda, a paz teve lugar. Parece que do objeto da campanha restam apenas…as penas e uma ou outra folha religiosa conspurcadas pelos dejetos das frangas!

 

                                                                                              José Avelino Gonçalves, Juiz Desembargador

- 28 out, 2021