Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XII
Nº: 626

“Não quero esquecer quem sou” Voltar

21 de setembro foi a data escolhida para assinalar o Dia Mundial da Doença de Alzheimer. É claro que nenhuma doença será, digamos, simpática mas esta doença, neurológica e degenerativa, é uma daquelas que me assusta muito. A sua capacidade de afetar e roubar as capacidade cognitivas, assim como, paulatinamente, a nossa memória, é algo que me assusta. Quão terrível será (para quem sofre da doença e para quem rodeia o doente) perder as nossas memórias, esquecermo-nos de quem somos e daquilo que gostamos?

Foi partindo dessa premissa que dei por mim a analisar as minhas memórias e a pensar em qual seria a memória mais importante para mim até aos dias de hoje, qual seria aquela que eu quereria manter até ao fim dos meus dias. Assumo que passaram por mim algumas imagens: a primeira vez que vi as minhas sobrinhas, aqueles momentos impagáveis em que dás uma gargalhada com a tua irmã ou aquele momento em que todas as coisas no mundo ficam no sítio certo por dares um abraço apertado às pessoas que mais gostas ou até o primeiro beijo dado a uma pessoa que consideras especial. Sinceramente, gostaria no fim da minha vida de me lembrar desses momentos que citei e de mais uns quantos em que considero que fui genuinamente feliz. Contudo…não penso que fosse capaz de escolher apenas um momento. Mas uma coisa tenho como certa: escolheria sempre um momento em que me senti muito amada, em que senti que fazia parte de uma família. Eu sei que isto é um nadinha clichê mas a verdade é que me incomoda o pensamento que um dia poderei esquecer o quanto fui e sou amada por aqueles que são importantes para mim. Até aos dias de hoje não existiram muitos casos próximos dos meus afetos que sofressem de Alzheimer (felizmente). Todos os meus avós (que já faleceram) sabiam quem eram e quem eu era na hora da morte deles. E quando penso nisso com mais afinco penso o quão importante e bom isso foi tanto para eles como para mim. A despedida, na hora do falecimento, foi dura mas a verdade é que não tive de me despedir de ninguém antes dessa hora fatídica. Considero que é isso que acontece com quem sofre de Alzheimer: vamos fazendo as despedidas, aos poucos, à medida que a doença vai roubando a memória de tudo o que é e foi, até ao dia em que apenas resta um corpo, sem as vivências e memórias que ligavam aquela pessoa à sua família.

Até aos dia de hoje convivi com dois casos (infelizmente ambos já não se encontram presentes), que sofreram dessa terrível doença. Curiosamente, ambas tias-avós. Relembro o quão triste era ver a minha tia-avó a não reconhecer o seu próprio reflexo no espelho. Olhava e dizia: “olha, a minha mãe”. A vida para ela tinha ficado lá longe, numa infância há muito perdida, em que ela ainda era uma criança que brincava com bonecas. Automaticamente, toda a sua vida ulterior foi esquecida: filhos, netos, marido, deixaram de existir. Passaram a não ser mais do que seres estranhos que insistiam em cuidar dela e que viviam perto dela sem que para isso ela encontrasse uma explicação (não que ela a procurasse). Ela apenas era uma criança, que brincava com bonecas, sempre que encontrava alguma boneca das suas netas e que apenas sobrevivia aos dias.

 No segundo caso, também um caso de uma mulher e de uma tia-avó minha, percebi que esta terrível doença lhe estava a roubar o ser, as memórias e as lembranças no dia em que a fui visitar ao lar onde residiu nos seus últimos anos de vida e, no momento em que cheguei junto dela, os seus olhos não se iluminaram. Era uma tia-avó muito próxima. Uma outra avó, no que aos meus sentimentos diz respeito. E sei bem que para ela também eu era uma das meninas dos seus olhos. E por isso me foi tão difícil perceber que a luz, tão conhecida nos seus olhos, não se acendeu, quando cheguei. Na época ainda reconhecia o meu pai (o que, assumo, também me feriu. Como poderia ela reconhecer o meu pai e não me reconhecer a mim?? É claro que isto não passava de pergunta retórica para a qual não teria explicação). Pelo que, depois de cumprimentar o meu pai me colocou a pergunta que me fez perceber que naquele dia se iniciavam as despedidas: “Quem é a senhora?”A minha tia-avó que me tinha visto crescer, eu que sempre tinha sido uma das suas meninas, não era reconhecida naquele momento. Olhou para mim como a mulher feita que já era e questionou quem era a senhora. Já lá vão uns anos desde essa pergunta. A situação foi piorando e momentos houve em que se lembrava de mim e outros não...

 A minha tia viveu os últimos dias assistindo, impávida, aos dias que passavam, perdida nos seus próprios pensamentos, sem a lembrança de que um dia eu fora uma pessoa importante para ela...

 Quando hoje, perante todos estes pensamentos, coloquei para mim mesma a questão: “Que memória gostavas de guardar para sempre?” Pensei em tudo o que aqui escrevo e cresceu em mim a certeza de que o importante seria guardar para sempre a memória de quem fui, de quem sou e em quem me tornei. Gostaria, sobretudo, de ter a certeza de que não me esquecerei daqueles que me acompanharam durante a viagem. O vazio que se instalou na vida da minha tia terá sido deveras angustiante. E partir sem as memórias que criaram ao conviver connosco é demasiado pesado para quem fica. E é isso: à questão “Que memória gostavas de guardar para sempre?” responderia: a memória de mim mesma.

- 26 set, 2023