100 anos a comer o pão que o diabo amassou
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Emília de Jesus Teles, nasceu a 18/04/1914
Vale a pena recordar o artigo escrito em 2014 sobre a história de vida de uma grande senhora que terminou a sua vida com 108 anos, nas instalações da Mutualista Covilhanense.
Este é um dos muitos exemplos para a nossa juventude que, com esta lição, podem aprender, e muito, a saber como foi a vida desta e de muitas outras senhoras que, a partir de 1914, viveram as agruras da vida com as inerentes dificuldades de sobrevivência, trabalhando, desde muito novas, no campo ou na fábrica, para contribuírem para uma vida melhor.
Nesse tempo, a família era mais unida e mais responsável. Havia o sentido da vida e das suas dificuldades.
É, por esse motivo, que nos atrevemos a transcrever, de novo, esta história desta senhora que, apesar de tudo, conseguiu ter uma vida de 108 anos quando, nessa altura, apenas se queixava das suas “pernitas” que já não eram como antes.
Exemplo a seguir.
Natural de S. Martinho, desta cidade da Covilhã, a D. Emília viveu períodos muitos difíceis e alguns (poucos) em que a viva lhe proporcionou momentos de alguma felicidade, fora do seu ambiente natural, quando lhe foi possível viver em Lisboa, junto com uma prima que ali residia e com quem desfrutou a sua residência.
Filha de gente muito pobre e humilde, a D. Emília vivia numa casinha juntamente com mais 8 irmãos.
“Mesmo quando quis fazer a primeira comunhão, foi uma vizinha amiga que me emprestou o vestido e os sapatos para poder ir á Igreja. Que alegria a minha quando me vi com um vestido tão lindo e uns sapatos que nunca tinha tido. De tal forma tinha ficado feliz que a vizinha me fez um vestido igual, mas durou pouco porque logo mo estragaram. Isto são outras histórias.”
Muitas dificuldades para sobreviver. Apenas com o parco vencimento do pai que, entretanto e muito cedo veio a falecer.
“Os meus padrinhos de batismo, vendo as dificuldades que estava a passar, iam buscar-me todos os dias para casa deles, contra a vontade da minha avó, que me ia buscar todos os dias. Um dia estava a chover tanto que a minha madrinha disse que deixasse ficar a menina, até que acabei por ficar definitivamente. Ali tinha melhor alimentação mas também ajudava muito nas tarefas da casa.”
“Todos os dias, ainda criança, ia á fonte encher o cântaro de água. A minha madrinha só queria a água da bica do meio. As vizinhas, com pena de mim, ajudavam-me a pegar na vasilha. Era muito pesada, depois de cheia.”
O padrinho, entretanto e por força da idade e da enfermidade que o apoquentava, foi para o Albergue. A madrinha, muito doente, veio a falecer.
“Com 10 anos apenas e sem condições para voltar á casa paterna, fui trabalhar para casa de uma senhora que morava em S. João de Malta. O marido era conhecido pela alcunha do “rato grande”. Fui então tomar conta de três meninas mais novas do que eu.”
Ali permaneceu durante cerca de quatro anos, com a missão de guardar, mudar fraldas, alimentar e até brincar com as três crianças e onde ganhava 10 escudos por mês, alimentação e dormida.
“A senhora da casa, com a morte do marido, teve de deixar o trabalho e, por isso, dispensou os meus préstimos. Fiquei desempregada, mas, de imediato, arranjei logo trabalho noutra casa a servir. Hoje chamam-se empregadas domésticas mas, no meu tempo, eram criadas de servir.”
“Comecei a ser conhecida e toda a gente me queria. Trabalho não me faltava. Quem me dava mais era para onde eu ia.”
“Até que comecei a namorar com um rapaz com quem, aos 24 anos de idade, casei. Desse casamento nasceu a única filha que tenho – a Conceição. Ao fim de cinco anos de estar casada, morreu o meu homem. Fiquei viúva e com uma filha muito pequenina (ainda não tinha três anos). Para eu poder continuar a trabalhar, a Conceição teve de ir para o Colégio das Freiras.”
Este foi outro obstáculo difícil de ultrapassar. Segundo a D. Emília, no Colégio não queriam lá a menina por ser muito pequenina. Foi necessária a intervenção do Senhor Padre Parente para que as Irmãs permitissem a entrada da Conceição.
“E eu continuei a trabalhar a dias. Tinha diversas casas para fazer a limpeza e um escritório que tinha o nome de Luís e Oliveira,”
“Quando me casei, fui morar para uma casa muito jeitosa, no Serrado. Tinha dois bons quartos, uma sala e uma cozinha. Não tinha água nem luz. Tinha que ir á fonte várias vezes carregar os cântaros para ter água em casa. A luz era a candeeiro a petróleo. Pagava de renda, nessa altura, 20 escudos. Cozinhava a carvão. Era uma mulherzinha a quem chamavam a “Chica” que ia lá levar o carvão e a carqueja.”
“Mais tarde, voltei a casar, mas também não tive sorte. O primeiro marido morreu com uma pneumonia. O segundo teve o mesmo destino. Entretanto a minha filha cresceu e quando já tinha idade foi trabalhar para o alfaiate. Ainda trabalhou em vários. Onde lhe pagavam mais era onde ela ficava.”
“Entretanto reformei-me quando fiz os 60 anos. Uma prima minha que vivia em Lisboa pediu-me muito para ir viver com ela. Lá fui. Sempre muito bem tratada. Ia com ela ao cinema, á revista, a passeios muito bonitos. No tempo bom, ia muitas vezes até á praia. Até cheguei a passear de autocarro para muitos lugares com ela. Aí sim, comecei a saber o que era ser feliz e sem fome.”
“Passei muita fome durante toda a minha vida. Para trabalhar não podia comer. Quando podia comer, havia sempre quem tivesse inveja do pão que as vizinhas me davam e tudo faziam para me afastar. Tempos tristes que já lá vão.”
Quando a D. Emília concluiu que passou a ser um fardo para a filha, que já só dava trabalho porque já não era útil, pela idade avançada, pelas enfermidades, pelo cansaço, pediu para ir para a Associação de Socorros Mútuos – Mutualista Covilhanense.
Havia feito, em tempo útil, uma pesquisa por todas as instituições da cidade e concluíra, ao tempo, que a Mutualista era a melhor casa para viver o tempo que Deus entender conceder-lhe.
Ali completou 100 anos de vida. Uma festa muito digna.
“Fiquei muito feliz com a festa que me fizeram. Já posso morrer descansada porque Deus me concedeu o privilégio de chegar aos 100 anos e ter uma festa muito linda. Muitas flores, muita música. Até tive direito a bolo de aniversário e á atuação do grupo… (a filha respondeu por ela) Tantos & Mais 1, que tocaram músicas muito alegres. Olhe, fiquei muito feliz e disse á minha filha: Agora sim, sou uma mulher feliz…O pão já me sabe a mel…”