O contratador de cera e o oleiro do Telhado
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O lugar do Couchel (Coixel na grafia do escrivão Viriato) pertence a terras do julgado de Poiares. Uma quinta que fora propriedade do mosteiro do Lorvão e que parte do levante com terras do Morgado, Senhor de Penacova, do poente com terras da Universidade de Coimbra, norte e sul com terras da Lousã e Ducado de Aveiro.
Naquela madrugada fusca de Setembro, ainda o sol dormitava para lá das serranias, já se avivava na casa do Joaquim Carvalho. Uma casa de lavoura sã e honesta, que ficava entalada no meio da aldeia. O almocreve negociava em cera na vila da Covilhã e arredores. Era um perdido pela serra, bebia-lhe os ares. Carregava alguma louça preta do Olho Marinho para os seus clientes da Coutada. Na ruazita, o Manuel Ferreira, um conhecido contractador de cera e morador no Lugar do Pereiro d`Além, já o esperava. As cavalgaduras bufavam, abanavam as tralhas que lhes atulhavam o dorso.
Principiava a chuviscar, um chuvisco gelado e cortante. Ao longe, lá para os lados do Piódão, escutavam-se o uivo dos lobos esfomeados. O Ferreira agarra a clavina com um nervoso tal, que solta umas sonoras gargalhadas do companheiro de viagem. Tem sonhos ruins com estas bestas, pede aos amigos para se desviarem do caminho que leva ao Telhado no Fundão. Seu avô fora morto, por uma alcateia que aparecera junto à capelita do Santo António da Neve, quando aí mourejava na arrecadação de neve para os ricos da capital.
Naquele fim de tarde do dia quatro de Setembro de 1843 o colorido do céu e dos campos da Cova da Beira era belo, mas pouco tranquilizador. Grandes nuvens isoladas iluminavam-se ao sol-poente, de reflexos dourados. Ao despedirem-se, reteve-os um vago rumor que soava nos ares. Eram as surdas detonações de uma trovoada que demandava já o cocuruto da serra da Estrela e trazia, para os lados de Unhais da Serra, brumas de névoa.
O Ferreira desviara para o Tortosendo. Tinha lá negócios. O encontro fica marcado para o albergue do José Nunes, por alcunha “o Vesguinho”. Situava-se ao chafariz da Praça ao cimo da Travessa do Vigário, na Covilhã. O encontro seria no dia seguinte, se Deus assim o quisesse!
Principiava a soprar a viração quente e rasteira, que levantava em redemoinhos as folhas já secas. Tudo anunciava uma tempestade próxima.
Já se avistava o Telhado com as suas casitas de pedra roubada ao Zêzere, misturadas com o duro granito. Palra-se que o lugar teve o seu primitivo assento no vale da Carantonha, tendo então a denominação de Nossa Senhora da Carantonha. Mas as formigas, essas malvadas, obrigaram a “desamparar a loja”, a procurar novo poiso.
Nesse dia, as chaminés expulsavam um fumo muito branco, muito cheiroso. Festejava-se a Nossa Senhora da Rosa, antes Nossa Senhora da Carantonha. Os telhadenses e muita gente de fora enchiam as ruas do lugar, terrivelmente engalanadas com seus enfeites muito coloridos, muito religiosos. Bruxas, caçolas, fogões de serradura, bilhas e muitos alguidares, arrumavam-se nas tendas que engalanavam a romaria. Cantava-se:
-“Nossa Senhora da Rosa/Estais na terra dos oleiros/Mandai-me lá dois vasos/Para lhes pôr dois craveiros.
No largo principal da aldeia jogava-se a corrida dos cântaros. As mulheres, muito afogueadas, aos gritinhos tentavam manter o cântaro cheio de água sobre uma "rodilha", que se coloca na cabeça. Era uma risota quando a vasilha de barro se entornava. É que, durante o percurso não se pode tocar no cântaro com as mãos. Eram logo eliminadas.
O almocreve do Couchel, terras de Poiares, estava com pressa. Tinha marcado encontro com alguns cerieiros da zona. As casas religiosas da Covilhã e Belmonte exigiam a melhor cera. Que arda sem fumo nem odor, com um ligeiro aroma ao mel doce da região. Era, juntamente com o azeite puro, os únicos combustíveis para iluminação que a igreja admitia em espaço sagrado. Que também acompanhava o Santíssimo e o viático no exterior.
Na taberna do Tiago Gonçalves gralhava-se alto. Na mesita ao fundo jogava-se aos dois dinheiros. Faziam parte da pandilha o Antão “O Moço”, o Joaquim Fernandes, o Francisco Silva e o Eduardo António, considerados os melhores oleiros, ou fabricantes de louça, do Telhado. O almocreve das faldas da serra da Lousã, era um viciado no jogo. Arruma-se à mesa.
Ao cantinho, de cigarrito no “beiço rachado” e de barriguinha cheia, estava o João Gomez, natural de Ferreiro. O espanhol andava no negócio do sabão, dos vinho e lãs. Pedira agasalho para as suas cavalgaduras. Mostrava um ar de negociante próspero, exibia o seu relógio de ouro. A marca “Lepiné de Paris” impunha-se no mostrador. Ceava regaladamente a sua caldeirada de borrego, feita pelas mãos generosas da Maria da Erada, a afamada cozinheira das terras do rio.
O Eduardo António, já entradote e a perder, pega-se com o carvalho. Apertava furiosamente o cabo de metal da “irmã”, salivava ódio. Apregoa, em voz alta, para quem o quisesse ouvir, que o contractador de cera já não regressaria vivo a Poiares. Seria ali o ajuste de contas! Tinha rixa antiga com o almocreve do Couxel. Na romaria do ano anterior espancara o larau de mulheres honestas junto ao Pesinho. O oleiro, amassado pelo pau de marmeleiro do homem “detrás da serra”, a deitar sangue da boca suja, escapa-se pelas margens do Zêzere, a jurar vingança.
O taberneiro, um homem honesto e talhado em boa lua, põe tino na altercação, evita a pega. A coisa acalma, enchem-se as canecas de barro com o frutado vinho da quinta do Ortigal. Os jogadores arrumam as cartas. Saem para jogar ao fito. O vendedor de cera ficou a dever cento e trinta réis. Só tinha uma moeda de quarenta réis, mas era falsa!
No dia seguinte, muito cedo, no lugar a que se chama “Os Fiéis de Deus”, que fica na estrada que leva a Pesinho, um grupo de mulheres, que se dirigiam para a feira do Fundão, encontram o corpo do contractador de cera. Estava junto a um formidável castanheiro, de barriga para cima e acompanhado por duas cavalgaduras carregadas com quatro arrobas e oito arráteis de cera em rama. O corpo foi depositado na Capela do Espírito Santo, erecta no fundo do lugar do Peso. Morrera de apoplexia traumática!
O suspeito foi preso pelo regedor de Almaceda. Vendera a casa às pressas e pisgava-se para a Vila de Setúbal, onde tem um irmão ocupado em fábrica de sola!