Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

“Não me preocupa nada morrer pobre” Voltar

Amante da arte, da arquitetura e da cultura que luta há muitos anos pela região da Beira Interior e pela Covilhã. Falamos de Francisco Geraldes, de 81 anos, nascido e criado na cidade.

De dentro das muralhas covilhanenses para Portugal, levando na bagagem, a cultura e o amor pela arte.

 

JF: Quem é o Francisco Geraldes?

É um jovem de 81 anos que nasceu em 1941. Nasci dentro das muralhas da Covilhã e estou a elaborar um trabalho exaustivo e ao pormenor, porque tenho boa memória, em que vou descrever as ruas onde eu andava e onde eu nasci e das gentes que passaram, em que num raio de 200 metro havia tudo. Barbeiros, sapateiros, farmácia, mercado, igreja onde eu ia à catequese. Tudo a 3 minutos de casa.

Nasco numa casa de três andares. Nós morávamos no rés-do-chão, onde vivi até aos 22 anos, com três divisões. Dois quartos interiores, uma sala onde dormia a minha irmã num sofá-cama, eu dormia numa cama com os meus dois irmãos e a minha mãe e o meu pai dormiam no outro quarto. A cozinha era debaixo da escada. Nasci num berço de madeira, porque ninguém tem culpa de nascer rico ou pobre, mas quero viver e vivo culturalmente rico. Não me preocupa nada morrer pobre de dinheiro.

 

JF: De onde veio o amor pela arte?

Isto é muito simples. Nós já nascemos com vocação. Nas escolas e nas Universidades melhoramos e aperfeiçoamos as nossas sensibilidades, sejam elas de que natureza forem. Eu tive a sorte de nascer perto de um ferro velho, que antigamente eram uma espécie de antiquário, e o dono chamavam-lhe o Manuel Espanhol e comprava tudo e vendia livros ao quilo.

O primeiro livro que eu comprei, a Monografia da Covilhã, custou 5 escudos. Eu andava sempre a ver as coisas e as pessoas mais ricas vendiam tudo, para esvaziar as casas, e a minha sensibilidade vem daí.

A fotografia que vai na capa do meu livro sou eu com 7 anos sentado na calçada portuguesa, que infelizmente uma Câmara mandou tapar tudo, perto de um latoeiro que estava a soldar umas panelas e eu estava a ver o que ele estava a fazer.

Depois vai ser ilustrado com as coisas daquele tempo, com os jogos que jogávamos e que hoje ninguém fala disso, fazíamos os nossos próprios brinquedos.

 

JF: Culturalmente rico. Pode levantar-nos o véu do espólio que tem e o que pode acontecer a esse espólio?

A minha ideia é um museu, mas não precisa de um espaço muito grande. Eu tentei lá na casa onde atualmente é uma quinta, com o dinheiro que fomos juntando, como imigrante dentro deste país como costumo dizer. Sou uma pessoa que passei horas a projetar e a desenhar e que sou das poucas pessoas da Covilhã que meteu o seu nome em vários pontos do país com trabalho seus.

Fundei duas associações culturais que lamento profundamente que tenham caído. Para mim, por hipocrisia a inveja. Mas as minhas investigações continuam.

Relativamente à ideia, é mesmo um museu que vai ter o nome de “Museu do Tempo”, ou “Museu da Raridade”. Tenho a ideia de uma casa antiga, dentro das muralhas do castelo, em que consigo fazer várias secções. Porque hoje para abrir um museu não precisa de um grande espaço, basta ter coisas boas. Tenho peças raras e algumas delas inéditas.

Eu queria ter os meus próprios meios, vendendo algum património, por exemplo a minha casa na Covilhã. Estou preso por causa dos meus livros e do mobiliário que eu comprei no palacete do jardim, há 49 anos. Custa-me desfazer disso. Mas mesmo com o dinheiro desse andar, é um bocado complicado.

Não quero nada com isto. É claro que preciso de algum apoio, naturalmente, para fazer isso, logístico principalmente.

 

JF: Mesmo com a homenagem de outubro, sente que não foi reconhecido o suficiente pela cidade?

Eu acho que não é preciso receber medalhas para ser reconhecido. É claro que é sempre bom. Até porque já o fizeram a outros níveis. Outras Câmaras, por exemplo em 1984, onde eu colaborei ativamente com o meu saudoso amigo Dr. Luís Fernando Carvalho Dias, onde trabalhei muito, mas fiquei contente. A Câmara há um tempo mandou cunhar duas medalhas de prata pura em que a número 1 está na Câmara e a número 2 tiveram a amabilidade de me ser oferecida. Foi uma maneira de me agradecerem, até porque nunca recebi nada. Nunca recebi um cêntimo da colaboração que dei à Covilhã, aliás de todas as colaborações. Desde 1970, que colabora com todos os pelouros da Cultura da Covilhã.

Agora o que não está certo é que um determinado presidente mandou partir uma pedra com o meu nome, onde está o mapa do Pelourinho, e convidaram-me para fazer o desenho do mapa. Um mapa é uma coisa que até um aluno do básico faz, mas eu faço o estudo da viagem de Pêro da Covilhã. O arquiteto até me disse que eu não tinha tempo para isso, mas estive um mês a trabalhar naquilo. E fiz o traçado, mas as pessoas nem sabem o que é aquilo, muito menos os turistas.

Um dia ligam para o meu atelier a dizer que estavam a partir o meu nome no Pelourinho. Eu nem sabia que estava lá o meu nome. Ligaram-me de novo e aí fui lá ver o meu nome aos bocados.

Fiquei no meu atelier a escrever uma carta antes da Câmara fechar e entreguei-a. Não me pediram desculpa, ofereceram-me um livro sem dedicatória: “Houve aqui um equívoco”.

Tinham embrulhado as pedras num saco para serem deitadas fora. Quando vi as pedras embrulhadas pedi para ficar com elas.

 

JF: houve alguma diferença entre a autarquia atual e as anteriores, ao nível da Cultura?

Desde 1970, que colaboro com as autarquias, especialmente na parte da Cultura. Por isso quero dizer que esta Câmara está de parabéns, porque esta vereadora com o pelouro da Cultura tem feito um trabalho fantástico, que está à vista. Desde a década de 70, sem menosprezar ninguém, considero-a a vereadora que mais se tem interessado pela cultura. Ouve as pessoas, atende as pessoas, aceita as ideias, tem interesse e tenta resolver as coisas. Não só ela, mas a Câmara no geral, estão de parabéns, no que toca à Cultura.

Não é preciso eu dizer. É só ver como estão as coisas desde 1970. Tiveram um salto quantitativo e qualitativo. Nunca se faz tudo, o que eu entendo. Aquilo que prometem é a função deles fazerem. Se não fazem, há que criticar, mas se fazem há que elogiar.

 

JF: De onde vem a paixão pela pintura e escultura?

A minha mãe desenhava muito bem e tinha uma caligrafia fantástica. Eu só “saí de baixo das saias” da minha mãe aos 9 anos e ficava muitas vezes a desenhar com ela muitas vezes. Quando tinha 18 anos, já fazia retratos que ainda hoje tenho. Passava o tempo a pintar em guache. Abandonei a pintura com 20 anos e comecei-me a ligar à arquitetura.

 

JF: E a paixão pelo fado de Coimbra?

O meu pai já cantava e bem. Aos 16 anos eu tinha uma grafonola e punha os meus amigos a dançar e a cantar. E gostava de os ver assim. E foi com essa idade que comecei a cantar também. Tenho fados feitos por mim, a letra, e outras que sei de ouvido.

Todas as semanas ia para o Cantinho dos Artistas, que agora já o mandaram abaixo. É uma coisa que me toca muito e pesquisei muito. Há quem diga que o fado só se canta em Lisboa, mas não é verdade.

 

JF: Algum projeto futuro?

Tenha algumas descobertas para fazer sobre a Covilhã antiga, tenho também alguns manuscritos. Para além disso, queria deixar também uma biografia minha, à minha família. Vou também continuar a fazer história.

- 17 mai, 2023