Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

O juiz Pereira Barreto e o crime de pôr cornos! Voltar

Regressemos à vila da Covilhã, a terra da água pura e da lã; da gente dura, mas sã! O almocreve da Pega era um assíduo frequentador dos tugúrios de Baco e dos arrumos da bela Hermengarda. Casada à luz da Igreja com Manuel Fernandes, tocador na Banda do Batalhão 13.º, era considerada a mais apetitosa da vila. Um pedaço de mulher! Quando ela o viu, teve uns assomos de doidice franca e lorpa. Aos primeiros toques, esquece o da corneta!

Num turbulento anoitecer do mês de Abril, o Manuel Fernandes, que era odiado pelos camaradas de armas, seguia na direcção do sítio do Matadouro, para dar o toque de recolher. Como levava a palheta seca, arruma a pança ao balcão da Maria Copovita, à capela de S. João de Malta, que pertenceu à Comenda de Malta.

Na taberna apinhada gralhava-se alto. Na mesita encostada ao beco que embeiça com a sacristia, jogava-se à bisca lambida. O padre António Nunes Mousaco, egresso do extinto Convento de Santo António de Penamacor e agora sem emprego, suciava com o rico proprietário Manuel Sampaio e o Manuel Espinho. Pagava-lhes uma copiosa rodada. Precisava deles para convencer o juiz Pereira Barreto, de que era um legítimo amante da Senhora Dona Maria Segunda, e que assistira ao “Acto de Aclamação da Nossa Augusta Soberana”, que tivera lugar na vila de Penamacor em 1834.

 Ao cantinho, de cigarrito no “beiço rachado” e de barriguinha cheia, estava o Bernardo da Pega. O paisano Francisco Sutre e o “Caixa de Rufo”, que andava de quezílias com o Major Frazão, acomodavam-se à mezinha do almocreve. Ao António Silva, a simples imagem dos bigodes graves do Major Frazão, incendiavam-lhe os olhos com fogachos de cólera. Retesavam-se os pulsos num desejo de desordem. Os outros militares sujeitavam-se ao rigoroso major, sendo incapazes de se levantarem para sacudir as humilhações. Mas a altercação acabou, pedia-se tinto para a reconciliação.

Por artes mágicas, o reluzente trombone, encostado ao balcão, muito sossegado, enquanto o músico escorropichava o último de três, desaparece. Foi o cabo dos trabalhos, uma profunda risota “tasqueira”. O Fernandes transpirava aflito, já se via em conselho de guerra, degredado para África!

Eram quase dez horas, a noite estava muito negra. A coruja do mato, a piar lugubremente, recolhe à capelita de Santa Marinha. Procurava, não o saboroso azeite das “Terras de Oiro”, mas uns gordos ratos que infestavam a sacristia nas delícias sagradas da grossa bíblia, besuntada pelas anafadas mãos do padre Figueiredo. Na casa dos Amorins, que aboletava o senhor comandante da Infantaria 13.º, todas as luzes estavam acesas. Ruminava por lá uma azáfama pouco habitual. Procurava-se o instrumento do Manuel Fernandes!

Para os lados da casa do corneteiro, no sítio da Barbacã, escutam-se uns sons avinhados de trombone, que acordam os ecos das serranias. Todos os militares para lá se dirigem. O Major Frazão e o corneta Antunes, com a sua facezinha trombuda e que coçava violentamente as duas generosas entradas capilares, encabeçam o grupo.

De repente, ao virar da esquina do albergue da Maria Fortuna do Ferro, a formidável visão. Ali, na porta da casita que alberga o Antunes e a sua bela esposa, encostada ao arremedo das velhas muralhas, maliciosamente atravessado, mostrava-se. Um opulento par de chifres de veado, caçado nas pujantes e ricas serranias da Lousã.

Os de trás engasgam-se no riso, engelham-se, todos os olhos se cravam no homem, agora sem o instrumento. Todos sabiam, o corneteiro era dono das mais formosas galhaduras das serranias! O Manuel Rodrigues Bicho, ex-sargento do Regimento de Milícias, que tivera alguns anos uma bonita amante que fugira com um almocreve da Idanha, com um riso seco, um brilho feroz nos olhos, arremata:

 - “Queime-se o “pilhador” de mulher honesta!”

A vizinhança, despenteada, de olheiras pisadas, cochichando, apodera-se sofregamente dos janelos. Toda a gente sabia do “enroscanço”. A Maria Vinagre, que viera de Verdelhos e ainda não tinha provado da novidade, sente um ódio rançoso pela mulher do corneta. Era o aviamento desavergonhado do almocreve que se agasalhava no leito do adultério. No curral ao lado, os bois, acordados pela festança, erguiam o focinho a escorrer de baba, sacudiam os cornos, mugiam para a lua, que aparecia muito timidamente lá para os lados de Sabugal. Na janela que vira para travessa do Peixe, no “engasganço” da risota, trauteava-se uma modinha:

- “Sete anos fui casada/ Sete homens conheci/ Graças a Deus para sempre/ Estou virgem como nasci”.

Ao que lhes respondem, da janelinha que coca para a casa do marido cuco:

- “Ao Senhor da Piedade/ Estou bradando por justiça/Porque, ou você não é homem/Ou então não tem nabiça.

O Major Frazão, com aquela confiança de marido dum estafermo rico, que ninguém jamais tentava e que na questão das saias não era um santo, manda recolher os mirones, ameaça-os com a enxovia! Incomoda o senhor juiz com o roubo do trombone e o adultério da mulher do corneta. Desconfiava-se do almocreve da Pega, um tipo danado para a brincadeira!

O Dr. João de Campos Pereira Barreto pensava já no almoço, nas apetitosas trutas do Côa fritinhas em escabeche. Sim, que de barriga vazia não se conhece a boa Justiça. Com fundado receio que os chifres pegassem moda na opulenta vila dos lanifícios, ordena ao escrivão Quintela que abrisse devassa, pelo crime de pôr cornos!

- 17 mai, 2023