Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Memórias de Abril Voltar

José Pedro Soares, ex-preso político; António Assunção, ex-combatente; e Luís Garra, que durante 41 anos foi coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, recordam a «Revolução dos Cravos» que derrubou a ditadura em 1974 e devolveu a liberdade ao povo português. Uma reportagem que republicamos na íntegra e que retrata os Dias da Liberdade. Uma das reportagens mais lidas do Jornal

José Pedro Soares

“Devo ter o recorde da tortura do sono”

José Pedro Soares “pagou cara” a coragem de lutar pela liberdade e pela democracia. Tipógrafo de profissão, era também membro do PCP e participava ativamente nos protestos contra a guerra colonial, a censura e pela liberdade que o Estado Novo, liderado por António de Oliveira Salazar, de 1933 a 1968, e posteriormente, até à Revolução dos Cravos com Marcelo Caetano, negou aos portugueses.

Foi preso a 1 de julho de 1971, com 21 anos, tendo sido libertado após o 25 de Abril. Ao Jornal Fórum Covilhã relatou esse período de três anos que passou nas prisões de Caxias e de Peniche e que lhe deixou marcas profundas para a vida.

“Fui preso quando estava na tropa, na Carregueira. Levaram-me para a sede da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), tendo seguido para Caxias para os célebres interrogatórios. Fizeram-me perguntas insistentes, praticaram agressões para saberem os meus contactos, mas nunca cedi e não denunciei ninguém que exercia atividades que visavam derrubar a ditadura”, começou por referir.

José Pedro Soares, hoje dirigente da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), afirma que foi interrogado “durante 33 dias e 33 noites”. “Devo ter o recorde da tortura do sono. Perdi a noção do tempo e do espaço e cheguei a pensar que ali estava o meu fim. Foi de uma brutalidade incrível, uma selvajaria”, descreve.

José Pedro Soares é um dos «símbolos» da luta contra a ditadura. Natural de Vila Franca de Xira, exerceu após o 25 de Abril, durante vários anos a sua intervenção cívica e política na região, nomeadamente na Covilhã, Guarda, Seia e Castelo Branco. Diz ser “com dor” que revisita estas memórias de um tempo «sombrio» para o país e para si, mas que o faz “para lembrar as novas gerações do valor da liberdade e da democracia”.

 

António Assunção

“Assisti a várias chacinas em Moçambique”

O professor e historiador, António Assunção, passou pela “terrível” experiência da guerra colonial. Tinha concluído o primeiro ano do curso de Filosofia, na Universidade de Letras do Porto, quando foi destacado para Moçambique em novembro de 1972, onde esteve até novembro de 1974, meio ano depois do 25 de Abril.

A guerra colonial descreve-a como uma “barbárie”. “O colonialismo com rosto humano é um mito, é uma ideia falsa. Não era como a África do Sul com o Apartheid, mas estava inerente a ideia que os negros eram subjugados pelos brancos. Assisti a vários chacinas em Moçambique”, conta.

“Comemoramos o fim da ditadura em Moçambique e antevimos que a guerra colonial também ia terminar. Fiquei entusiasmado com o novo regime”, recorda, acrescentando que com o regresso a Portugal terminou os estudos e iniciou uma carreira de professor no Ensino Público durante quase 40 anos, na cidade da Covilhã.

António Assunção assinala que a «Revolução dos Cravos» “trouxe coisas maravilhosas” ao país e destaca a criação do SNS, o acesso ao ensino generalizado, o Poder Autárquico Local e a realização de obras por todo o país. Lamenta, no entanto, que passados 47 anos, a regionalização “não seja ainda uma realidade”, mas acredita que “chegará mais cedo ou mais tarde”.

Apesar de todo o progresso que a democracia permitiu ao país, o professor e historiador considera que “falta muito para cumprir Abril, no plano do Desenvolvimento”, um dos vértices que a «revolução» idealizava. “Há três grandes desafios sociais: o combate às desigualdades, a criação de perspetivas para os jovens e a luta contra a corrupção. É preciso reforçar a intervenção nestas áreas para defender a democracia dos populistas que a querem destruir”, alertou. 

 

Luís Garra

“Hoje a vida é incomparavelmente melhor”

Com 17 anos quando se deu o 25 de Abril, Luís Garra já trabalhava há sete. “Comecei a trabalhar aos 10 anos, num alfaiate e aos 11 fui para a fábrica Sá Pessoa e Irmãos e recordo-me dos trabalhadores a referirem que tinha havido um «Golpe de Estado». Depois é dada a palavra de ordem para sairmos para a rua, dirigimo-nos ao Pelourinho e lembro-me do entusiasmo, da alegria e da satisfação nas ruas da Covilhã”, recorda.

A Covilhã pela sua caraterística operária marcante e com o forte movimento associativo “já lutava contra o regime ditatorial antes do 25 de Abril”. Entre outras ações, na Covilhã realizaram-se as negociações do Contrato Coletivo de Trabalho em 1973; seguiu-se a «Greve dos Mil Escudos», mas já em 1941 e 1946 e nos anos de 1960, se realizaram greves na Covilhã. “As coletividades tiveram um papel muito importante na politização das pessoas, principalmente dos trabalhadores, porque era aí que se encontravam, conversavam, e depois tinham o sindicato onde organizavam a sua intervenção. A adesão popular ao 25 de Abril na Covilhã é resultado de toda uma cultura e quem vir a história do movimento operário percebe que temos aqui uma tradição de luta reivindicativa muito poderosa ainda antes do 25 de Abril”, explicou Luís Garra, que após cinco anos da «Revolução dos Cravos» chegou a coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, cargo que desempenhou por 41 anos.

Luís Garra destaca que com o 25 de Abril “foram dados saltos extraordinários a todos os níveis, no plano laboral, salarial, mas também social. Hoje a vida, apesar de todos os problemas que temos, é incomparavelmente melhor. Quem fala no Salazar, e diz que é preciso um, não sabe o que foi o fascismo. Foi fome, tortura, prisão, guerra e exploração intensa”, afirma.

No entanto, face ao momento peculiar que o mundo atravessa considera que “é preciso estar vigilante”. “A pretexto e à boleia da pandemia alertei que se estavam a cortar direitos, a reduzir rendimentos aos trabalhadores e tentaram impor férias antecipadas, com os lay-offs. Esta situação foi revertida por força da atuação dos sindicatos e da CGTP e que depois teve tradução no Orçamento de Estado por pressão do PCP, sendo que o lay-off passou a ser considerado a 100%. No ano de 2020, o corte de rendimentos dos trabalhadores foi muito significativo e as associações patronais, com o pretexto da pandemia, recusam-se a negociar aumentos salariais”.

“O 25 está incompletamente cumprido, mas significou balanços extraordinários na vida das pessoas. Temos de o saber preservar e combater a exploração é uma palavra de ordem muito forte nos tempos que atravessamos”, concluiu.

- 26 abr, 2023