Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

A cachopa, o caso do casamento forçado e a cravagem de centeio Voltar

A Maria José foi levada para a loja dos bois do Anastácio. Uma casita térrea construída com pedras roubadas ao rio. Apanharam-lhe no bolso do vestido de chita, muito florido, uma porção de cravagem de centeio. Os cabos de polícia e a Maria Carolina vigiavam a presa, que se besuntava com o choro. Lágrimas tristes, como contas de vidro sujas, tremeluziam nas pálpebras inflamadas da cachopa. Dezassete anos de beleza entregues a um velho caquético, mas muito rico. Lavrava vinte carros de milho e centeio, uma pipa e meia de azeite, muita castanha dos soutos de Unhais, tinha duas juntas de bois e borregos de criação.

Agora que estava viúvo, era o casamento mais apetecível do lugar. A rapariga odiou o velho! Casara contra vontade. Era uma raparigaça de boas curvas, com peitos de ama, muito desejada. O cabelo algo acastanhado esvoaçava, todo lustroso, espremido pelo interrogatório do senhor Administrador. Queixava-se do pai que a obrigara a casar. Amava outro. Era no primeiro mês do seu casamento.

Vamos ao princípio.

O sol daimoso daquele fim de tarde de Maio engrossava o milheiral, que bebia regaladamente as águas límpidas da ribeira do Paul. Sentada junto ao moinho, com os pezinhos nas águas frescas da ribeira, sorria com o raminho das flores campestres muito juntinho ao coração.  Mutuamente apaixonados com promessa de casamento para toda a vida. Andava de derriço com o Manuel Carriço do Tortosendo, zelador das valetas e taludes da Estrada Real n.º 46, que vai da Covilhã a Tondela. Conheceram-se na venda do Alfredo Celestino Quintela, na rua do Cemitério do lugar das Cortes. O guardião da 46 ficou seduzido pela graça de um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes que ternuravam!

O cantoneiro era a pessoa mais odiada na região. Uma legião de inimigos cocavam a ocasião para lhe “apertar o papo”! Atrevera-se a levantar um auto, por infração das leis policiais das estradas, à senhora Viscondessa do Tortosendo, Maria do Resgate Pignately Esteves da Fonseca. A boa da fidalga já se tinha passado desta vida presente! Falecera ás sete horas da noite do mês de Dezembro, na rua da Fonte, freguesia e concelho de São Vicente da Beira. Os manos Lourenço, filhos de Dâmaso Exposto e moradores na rua Nova do Souto, no Tortosendo, procuravam-no nas ruelas escuras da vila. Queriam acertar-lhe o passo!

Na semana anterior atreveram-se a apascentar dois roliços porcos, com licença da palavra, nas bermas arrumadinhas da estrada. O cantoneiro, a apitar muito e com o livrinho dos autos encafuado no sovaco, exerce a sua terrífica autoridade. Os suínos, muito eriçados, com o focinho na terra fofa, bufando e grunhindo, fogem à caça… à multa! Soube-lhes a cinco mil réis! O preço de um bom javardo na feira do Fundão! Os autuados querem levar o caso até à Relação de Lisboa, assar umas belas e saborosas costeletas dos ditos, nas traseiras do tribunal. Para que suas Ex.ªs, os Desembargadores, saboreassem a qualidade da carne beirã, criada nos vegetarianos taludes da 46!

A Maria José não parava em casa. Nas palavras da vizinhança avelhada era muito leviana, uma rapariga muito atrevida, uma ganapa, que já pintava a manta nas romarias! Falava-se no cantoneiro do Tortosendo. As mulheres que sachavam os milheirais, faziam comentários pouco abonatórios da cachopa, riam-se do noivo; que lhe tinham saído dois casamentos com boas lavradeiras, mas só tinha olhos para a filha do Jerónimo!

Na Romaria de Nossa Senhora de La Salette, que se festeja no dia nove de Setembro, uma multidão ruidosa enchia o adro da capela, ainda em construção. O Zêzere mais abaixo, seguia calmo em direção ao Tejo, que o vai apanhar a Constância. A Maria José dava um toque de beleza ao arraial com a sua roupinha escarlate e botinas de ponteira de verniz. Viram-nos na barraca do “Anastácio, Melancias & Companhia”, a cochicharem muito aconchegados, enquanto o pai, na barraca ao lado, atestava os foles com o morangueiro do “Pinguitas”.

O velho Anastácio, feitor da grande Quinta do Rio esfregava, gulosamente, as mãos. As suas melancias eram as mais doces.  As águas cristalinas do Corges davam-lhes vida. Eram já muito elogiadas no país e no estrangeiro!

A Filarmónica do Paúl dava os últimos acordes em honra da Santa. O mestre “Romão & Companhia” têm a palheta seca, arrumam-se à tenda do “Pinguitas”, um especialista na arte de bem beber! O Joaquim Casteleiro do Paúl, um artista do bombo, mete-se com a pequena. Acha-lhe graça! O cantoneiro é que não estava para modas, acerta com uma anafada melancia na cabeçorra do engraçadinho. O mestre da banda não gosta, impõe a sua autoridade de regente da Filarmónica! A maçaneta do bombo mostra a sua verdadeira utilidade! Trava-se uma formidável desordem entre os músicos do Paúl e os rapazes do Tortosendo. Até o cabo do Peso apanha pancada da grossa!

O pai, à socapa da família, já a tinha já prometido! A troco de um prédio composto de terra de centeio e de milho, sito à Ponte Pedrinha, na margem esquerda do Zêzere e uma bolsa recheada de libras. Não tinha os rudimentos de malícia necessária, para desconfiar que uma menina de dezasseis anos, criada nos seios da natureza imaculada de uma aldeia das Beiras, encostada aos Montes Hermínios, pudesse andar enrolada com um rapazola de má fama. Ainda por cima do Tortosendo!

Até ao dia, em que regressando da Covilhã, resolvera parar na Igreja Paroquial do Tortosendo, para pedir loas à Senhora da Oliveira. Naquele dia a Junta da Paróquia da Freguesia reunia-se à pressa na sacristia. Preparavam uma demanda contra o ferreiro Soares e sua mulher pela posse das terras baldias da Barroca da Ginjeira, na margem direita do Ribeiro da Água-Boa. Quando o homem do Paul trepa as escadas que levam à igreja, algumas fungadelas de riso trazem-lhe o peso das palavras das sachadoras dos milheirais. Acelera o casório!

O pai anunciou à Maria José o seu rico futuro, e encontrou-a fria. A rapariga repele o noivo. Leva dois tabefes! Choraminga muito, fecha-se por tempo de uma semana, sem querer ver sol nem lua. O cantoneiro sente-lhe a falta. Mas a pequena lá se vergou ao desejo do pai e à felicidade da mãe. Que já sabia do arrufo amoroso com o rapazola do Tortosendo, que não tinha onde cair morto!

(continua)

- 06 jan, 2023