Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Parte I - Democracia: nascimento e morte. Uma mão cheia de nada que é tudo Voltar

Democracia: nascimento e morte.

 Uma mão cheia de nada que é tudo. 

                                                «Esta é a verdadeira Liberdade quando os homens que nascem livres,

                                                Tendo de aconselhar o povo, podem falar livremente…»

(Eurípedes, traduzido por Milton)

 

Quando Demónax de Mantineia,[i] um legislador de toga, de sandálias nos pés, barba desalinhada da cidade agrícola grega, de Cirene, nas costas da Líbia, que, por volta do ano 550 a.C., se dirige às mulheres/ Pítias do Oráculo da cidade de Delfos[ii], “umbigo do mundo”, e que lhe é exigido dar a Cirene, o direito de resistir à tirania do seu rei coxo e gago, Bato III, e de se reunir numa assembleia, a fim de se governarem a si próprios e segundo as suas próprias leis. Estava longe de imaginar que este seu modo de proceder seria o registo mais antigo não só da invenção de uma nova maneira de ser e estar como também de uma poderosa prática de vida e a que os gregos iriam chamaram-lhe demokratia.

                De Demónax de Mantineia, segundo o que se sabe, até à data, não sobreviveu qualquer discurso ou uma das suas leis. O que faz dele um símbolo e um dos seus mistérios, sobretudo para os que pensam conhecer tudo. O assunto da democracia está repleto de enigmas, confusões e coisas que apenas se supõe serem verdade.

 O substantivo feminino demokratia foi um desses termos minúsculos que brotou de um sonho pequeno mas de grande efeito. O seu futuro será o de arrebatar muitos milhões de pessoas em todos os quatro cantos do mundo, ou seja, um termo que irá mudar o mundo apesar de ainda hoje ser subestimado e não completamente compreendido.

 É a cidade estado de Atenas que ganha a palma, apesar de não ter sido o berço da demokratia foi ela que criou a ideia e a prática da demokratia, não obstante a pequena palavra T «democracia» ser muito mais antiga do que os gregos clássicos davam a entender. As suas raízes podem ser seguidas até ao período Micénico de escrita linear B e noutras povoações urbanas do Peloponeso, isto é, até à civilização da Idade do Bronze. Não sabemos bem como e onde é que os micénicos começaram a usar a palavra de duas sílabas, damos, para se referirem a um grupo de pessoas sem qualquer poder especial, mas que, a determinada altura, tiveram em comum uma certa terra, assim como também o uso dessa outra palavra de três sílabas, damokoi, para designarem um titular de um cargo que atua por conta ou em nome da demos.

No entanto, estas incertezas são fortalecidas por outra descoberta que nos vem dos arqueólogos modernos: de que a prática democrática do autogoverno ou governo direto por assembleias não são uma inovação Grega. O brilho de uma democracia baseada em assembleias tem origem, em primeiro lugar, no «Oriente», isto é, em terras que, nos dias de hoje, correspondem geograficamente à Síria, ao Iraque e ao Irão. Mais tarde, o costume do autogoverno popular foi transportado mais para leste, para as partes do subcontinente indiano. Com efeito, nessa região, por volta de 1500 a.C., quando se estava a iniciar o período Védico, as repúblicas governadas por assembleias já se iam tornando comuns. Tal costume também viajou para o Ocidente, primeiro para as cidades fenícias, como Biblos e Sídon, depois para Atenas, onde, ao longo do século v a.C., viria a ser reivindicado como algo único, algo que era próprio do Ocidente, ou seja, como um sinal de superioridade em relação ao «barbarismo» do Oriente.

O facto é que o som estranho do substantivo, demokratia, veio transformar radicalmente o curso da história. Podemos mesmo dizer que para além de agarrar a história o substantivo já nos conquistou ao revelar a intenção de como um povo se governa a si próprio, isto é, prevê que os seres humanos podem inventar e usar instituições concebidas especialmente para lhes permitir decidirem, por si próprios, a maneira de como viver enquanto humanizadores sobre a terra e como iguais.

O que há de extraordinário no tipo de governo chamado demokratia é que veio exigir das pessoas que se dessem conta que nada do que é humano está inscrito na pedra, que tudo está assente nas mutabilidades do tempo e do espaço e que caso queiram ser pessoas de tino, deveriam criar e preservar certos modos de vida em que o comungar entre iguais, com abertura e flexibilidade, seja de facto a lei inscrita no agir humano.

Demokratia significa desnaturar o poder, o exigir ultrapassar a conversa do poder dos deuses, da natureza, de pretensões, de privilégios baseados na superioridade da inteligência ou do sangue e o de impedir governos exercidos por poderosos que se pretendem afirmar como super-homens. Neste sentido, a demokratia permite reconhecer que, embora as pessoas não sejam anjos ou deuses e deusas, eram, no mínimo, suficientemente boas para impedir que alguns humanos pensassem que o eram. Porque a demokratia, na sua natureza, significa o autogoverno entre iguais, a governação legítima de uma assembleia de pessoas cujo poder soberano para decidir já não tinha de ser atribuído a deuses imaginários, a trovejantes vozes da tradição, a déspotas, àqueles que sabem das coisas e estão por dentro dos segredos, ou então que fosse pura e simplesmente entregue ao quotidiano hábito. Com efeito, este desnaturar do poder, conduzir-nos-á ao que hoje chamamos «democracia» — partidos políticos, recursos judiciais, colégios eleitorais, sociedade civil, liberdades civis, linguagem própria das eleições, ou a liberdade de imprensa.

A língua da demokratia é marcadamente histórica não obstante de ter andado oculta no tempo histórico. Ela surge-nos enfatizada nas assembleias representativas no mundo do Islão/islamismo politico, aliás, lugar onde ocidente irá beber, mais especificamente o norte da península ibérica, e inspirar o jovem Afonso IX, de Leão e da Galiza, na criação das cortes e no princípio que permite conferir poderes a alguém de modo a que atue em nome de outrem.

 Do referido decorre a ideia que a demokratia está ligada ao tempo histórico, instituições e todos os costumes, e que não é afetada, na sua essência, pelo tempo: é a nossa companheira de viagem e propõe-se à nossa frágil e crocante consciência como um desafio ao que queremos como humanos. Esta contingência da demokratia reveste-se de suma importância, principalmente neste tempo, século XXI, em que vemos avolumarem-se discordâncias, atraindo maus representantes em torno do seu significado, quanto à sua eficácia e o seu destino.

Todavia, o que venha a significar a palavra demokratia «participativa» entendida como a participação de todos os cidadãos na tomada de decisões para as suas vidas, por exemplo, votando e aceitando veredictos obtidos por uma maioria, e, por outro lado, os que defendem uma demokratia indireta, ou «representativa», que será um método de governo no qual, através do voto e da expressão pública das diferentes opiniões, as pessoas escolhem os seus representantes e estes, por seu turno, irão decidir em seu nome o que se decidir. Onde o voto, apesar de ser uma migalha num bolo, simboliza, comunica e expressa um princípio, momentâneo, de igualdade de poder.

Na demokratia há a convicção de que a parte central da vida devia ser o autogoverno e não os negócios, princípio de que a política vinha antes de tudo o resto, e que a atividade privada era inferior à vida política e aos actos que esta implicava, ou seja, as assembleias públicas, os discursos e a criação de leis. Daí que no período da demokratia ateniense, ser estritamente proibido discursar publicamente na ágora, por ser juízo comum que a governação e os negócios não combinavam bem, tal como a água e o azeite. Daí se concluía que os assuntos políticos deviam ser tratados a uma certa distância da ágora, num local ali perto, chamado Pnix. Situada numa colina alongada que era um declive natural salpicado de eucaliptos e alamedas de oliveiras, 400 metros acima da ágora, hoje, a Pnix (ver, na internet, aguarela de Rudolph Muller[iii], 1863, estrado dos oradores, a Pnix com a Acrópole ao fundo) é um local desolado, como se fora um lugar incompreendido deixado sozinho pelos turistas, que passam apressados e ansiosos por chegar ao cimo da ladeira e fotografar a Acrópole ou tirar selfies. O abandono de hoje contrasta com o que era ao tempo da demokratia, quando funcionava como local de reunião para toda a comunidade dos cidadãos, que aí decidiam das leis que iriam governar a sua vida nesta terra.

Os Atenienses usavam o substantivo, com fortes conotações femininas, demokratia para designar o seu estilo de vida, ou seja, ela mesma incarna qualidades animadas «femininas». O que significa ter a proteção de uma divindade feminina e, nesta medida, é agraciada com o poder de moldar as esperanças e os temores de homens. E por isso é fundamental que nos desembaracemos dos clichés/chavões que falam de uma demokratia ateniense com «predomínio masculino» ou de como a democracia acentuava a distinção homem versus mulher que antes fora suavizada pela cultura aristocrática local. E uma vez que o tenhamos feito, poderemos então compreender verdadeiramente o que significa ver habitualmente a democracia como uma mulher dotada de qualidades divinas, ou seja, uma personagem investida do poder de vida e de morte sobre os filhos que gerara, o povo de Atenas.

Se é verdade que as mulheres estavam excluídas da política e da atividade legislativa, já, por outro lado, participavam plenamente tanto nos rituais privados, como nas festas religiosas promovidas pela cidade. Rituais e festas, não só lhes davam acesso aos espaços públicos, em geral reservados aos homens, como também lhes permitiam atuar como sacerdotisas, por exemplo, as pitonisas, mulheres poderosas (as pythia) que muitos dos homens temiam dado pensarem que estavam muito mais próximas do divino do que o comum dos cidadãos, que transmitiam a vontade de Apolo a quem visitava o oráculo de Delfos.

Há também provas de um culto à deusa Dèmokratia, que contava com bastantes seguidores. Dentro da ágora, viam-se monumentos de pedra e de madeira em sua honra. E diz-se que o seu santuário estaria algures no lado noroeste da ágora. A ser verdade, terá existido um altar de pedra junto do qual os cidadãos, assistidos por uma sacerdotisa ou por um sacerdote, diriam as suas orações e ofereceriam os seus sacrifícios públicos. E é de crer que o papel da sacerdotisa da Dèmokratia fosse especialmente poderoso. O seu propósito seria o de difundir o respeito pela deusa, a sua autoridade não haveria de ser profanada e, se alguém ousasse sujeitar-se-ia a uma punição que ia da indiferença dos demais à excomunhão, ou mesmo a morte.

A democracia também “morre” por causa dos vários líderes democráticos demagogos, cidadãos com sórdidas aventuras e a sua primeira morte tem data e culpados: depois que Antipáter ficou doente e morreu, em 319 a.C., a democracia conseguiu voltar à cidade, mas isso só durou até quando foi nomeado Demétrio de Faleron como governador direto de Atenas, o qual veio a ser empossado pelo filho mais velho de Antipáter, Cassandro, um homem sempre cheio de maquinações. Demétrio governou a cidade durante uma década. Após este período, os democratas da cidade voltaram à carga, fizeram acordos com os macedónios, não se opuseram às suas bravatas sobre como iriam libertar outras cidades gregas da oligarquia, e tudo isso para, no fim, se verem de novo sujeitos a mais uma oligarquia. A força do seu persistente espírito de resistência a tal que, em 287 a.C., uma vez mais e contra todas as expectativas, os Atenienses arranjaram maneira de recuperar as suas instituições de autogoverno, e, desta vez, conseguiriam ferrar nelas as suas garras por uns bons vinte e cinco mos. Mas os Macedónios não estavam dispostos a consenti-lo. No ano de 260 a.C., Antígono Gónatas, filho de Demétrio, ordenou às suas tropas que reconquistassem a cidade. Os democratas de Atenas foram esmagados e, desta feita, seria de vez. E assim morria uma democracia. Fora a sua primeira morte, mas fora lenta e dolorosa.

 

 

Carlos M. B. Geraldes, (Ph. Dr.)

 

 

 

 

 

 

[i] Keane, j., Vida e morte da democracia, ed. 70, 2009

[ii] Taplin, O. Fogo Grego, Gradiva, 1990

[iii] https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Muller_Rudolph_-_View_of_the_Acropolis_from_the_Pnyx_-_Google_Art_Project.jpg

- 02 mar, 2021
- Carlos M. B. Geraldes