Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XII
Nº: 626

Cidadania e destino: descerebrados, despolitizados e encarrapatos. Voltar

Webinar em nota a meio-tom

Cidadania e destino: descerebrados, despolitizados e encarrapatos.

«Para cada pergunta difícil há uma resposta simples – e que está errada»

  1. L. Mencken

Quando há seis milhões de anos umas criaturas encarrapatas semelhantes aos chimpanzés resolveram, sem sabermos a razão, abandonar as copas das árvores para se aventurarem nas planícies estariam longe da caminhada terrena que iriam originar.

Que estranho modo de vida, hein!?

Chegados à planície a natureza dos encarrapatos só tem um objetivo: expurgar tudo aquilo que o aborrece e o que se julga e sente ser do contra.

A socialização humana, nesta perspetiva, tem o seu alicerce na ação, no sentir, na imaginação e no pensamento. Nesta história o passado, presente e futuro[1] distante, pode permitir-nos imaginar um novo romance de engenharia política fiel a um modo de estar diferente das orientações a que estamos habituados nas copas da nossa massa encefálica. Para acedermos a esse possível futuro iremos socorrer-nos de alguns escritores considerados distópicos e de alguns princípios da ideologia fascista, comunista e liberal.

Mais do que antecipar o que nos dominará é a porta que estamos a escancarar para a ascensão do que aí vem. O distópico, sociedade imaginária, torna-se topos/lugar de encontro, principalmente pelo crescente domínio das máquinas sobre a vida, com a normatização dos hábitos, que reduzem, como quem não quer nada com os encarrapatos, a individualidade humana. Em vez de nomes, as pessoas recebem números e letras, iniciados por um algarismo árabe, uma consoante ou uma vogal do abecedário ou letras do alfabeto, e passam a depender da análise de dados. O “eu” e o “nós” misturam- se e o diário da nossa individualidade passará a refletir uma nova gramatica mental. O coletivo, dado ser o mais importante transformará o nosso agir numa mera anotação aplicativa

Tudo é controlado pelo Estado e pelas suas agências eugenistas. O ritmo da vida, a ingestão de alimentos, a quantidade de vezes que mastigamos, o defecar, o lazer, o trabalho físico, tudo é regido pela ditadura de uma Aplicação baseada num governalho taylorista de produção, que enfatiza a eficiência operacional das tarefas realizadas, nas quais se busca extrair o melhor rendimento de cada encarrapato: a ignorância ativa e agressiva, isto é, todo um sistema de racionalização da vida concebido em moldes científicos. Desta maneira, cada especto da cidadania para além de ser controlado e estudado num base de dados segundo as orientações de uma governança estranha ao que conhecemos, o facto é que o Benevides, o Macário, a Figueiroa, a Hermengarda, a Mafalda e por aí fora serão subjugados a uma outra lógica de condição humana enquanto seres individuais.

A natureza humana no seu livre-arbítrio é banida[2] e só existe nos confins do limbo da mente humana, porque a psicotronização propagandeada e publicitada diz-nos que só existe felicidade (eudaimonia) na ausência da liberdade. Ora, no presente, parece que estamos a viver a tempestade perfeita dado estarmos a ser reconstruídos e reconfigurados mentalmente como uma máquina que se pretende, à medida local, num modelo comum aos povos. É todo um ideário que não permite desenvolver doenças perigosas: a imaginação e o sonho como destino. O sonho é uma enfermidade psíquica, um grão na engrenagem que pode obstaculizar o mecanismo do poder. É toda uma nova narrativa que nos arrasta para um novo paradigma da gramática social!

Todo este mundo é-nos apontado em Evgueni Zamiatine[3], George Orwell,[4] Aldous Huxley[5] em que a individualidade cedeu espaço a um completo domínio do Estado sobre os cidadãos, podendo-os vigiar inclusive em suas casas, por meio de um olhar panóptico já proposto, no ido ano 1791, pelo filósofo Jeremy Bentham[6].

Aliás, já o dramaturgo grego Aristófanes (447 a.C. — 385 a. C) nos alerta para a facilidade com que os cidadãos/povos são usados como uma acessível massa de manobra:

«Ó povo, que belo império o teu! Todos te receiam como a um rei. Mas és tão fácil de levar! Gostas de ser engraxado, enganado, ficas de boca aberta perante os oradores. Essa tua mioleira está aí, mas anda longe.»[7]

Ora, até parece que podemos inferir que os cidadão/povos assumem um comportamento humano assente num Fordismo[8], modelo de produção em massa, constituído por linhas de montagem semiautomáticas que nunca chega a questionar a situação em que se encontra, mistura homem e aplicação, para poder desvencilhar-se de tanta felicidade artificial e seguir um agir que não lhe extirpe a imaginação, a loucura e o pensar.

É todo um viver robotizado em que todos repetem o mesmo gesto. É toda uma visão pessimista do futuro da cidadania, dado parecer que as crenças no progresso do regime democrático afigura ser uma autoilusão. No imediato estamos a vacilar perante o pesadelo que já aí está. O fascínio pelo progresso da tecnologia e da ciência, em articulação com quem exerce a governança, e do facto de poder oferecer aos seus cidadãos uma felicidade obrigatória, o novo será o pesadelo do nosso livre-arbítrio e da nossa cidadania.

John B. Watson, 1878-1958,fundador do comportamentalismo (behaviorismo) afirmava com frieza que podia escolher na rua, ao acaso, uma criança saudável e convertê-la, à sua vontade, em médico, advogado, artista, mendigo ou ladrão, independentemente das inclinações, capacidades, gostos e origem dos seus predecessores.

O surpreendente é que a nossa atualidade apresenta todo um mundo em que o controlo social sobre o nosso livre-arbítrio começa a ser escasso para que o acaso possa existir nas nossas vidas tudo parece estar a ser formado no mesmo molde de produção em série. Como exemplo, basta acedermos às redes sociais e deitarmos um olhar atento à economia comportamental. O desejo de experimentar está a desvanecer-se, a desaparecer em nome de um modo de conforto e de satisfação mental que escancara a porta para a anulação da cidadania. O descerebrar da cidadania é futuro.

Associado ao atrás referido, há que apresentar um olhar cético em relação à ideia de progresso e uma certa desconfiança ante a razão. Isto porque toda a avalanche materialista, endeusamento da ciência, interpretações ferozes e desesperadas dos governantes, em nome de um conforto exterior/biológico que possa ser sentido pelos cidadãos pode perder o sentido estrito de condição humana, dado terem sido transformados pelo meio das aplicações, apps, e chips em máquinas que perderam a sua razão de ser.

Se os estudos e investigações de Louis Cheskin[9], 1907-1981, sobre a cor conseguiram demonstrar a eficácia da publicidade subliminar no comportamento humano, agora imagine as técnicas que por aí são utilizadas para descerebrar o cidadão!

Não há como criar modelos variados, criando a ilusão de autonomia, e atribuir a cada um tarefas muito especializadas e indispensáveis para uma sociedade obcecada pela estabilidade.

Ora, tudo isto ocorre num caldo de ladainhas e manipulações mediáticas, lúdicas, delirantes e misturadas com projeções de jogos de linguagem de extrema-esquerda, direita, racista, xenófoba, chauvinista, comunista, fascista, liberais e todo um restante filão de pensamento, assente numa substantivação do sufixo ismo, que escapa e que permite fazer tiro ao boneco no regime democrático. De facto a deusa da civilização, Atena, só pode ter recolhido aos seus aposentos e distanciar-se, tristemente deste chorrilho do agir humano…

Olhar para o que nos rodeia, ajuda a compreender melhor o alcance dos riscos e perigos que surgem quando, de novo e por todos os lados, os “progressos científicos e técnicos” nos chocam com riscos ecológicos que põem em perigo o futuro do planeta e da encarrapata espécie humana.

A cidadania tem que vigiar o discurso político, de perto, sobre os progressos científicos atuais e seus potenciais efeitos destrutivos, porque a padronização dos indivíduos, controlo da identidade, inculcação de falsos sonhos, critérios estéticos, manipulação genética e química, incentivo à libido com propostas de estimulantes e de anticoncecionais é impor um destino, sem nos darmos conta, e não um incentivo ao propósito individual.

O que aí vem nem é direita e nem é esquerda. O que aí vem é algo que está, em parte, na natureza humana. O que aí vem já cá está.[10] O que aí vem são as nossas casas como centros de condicionamento e de embrutecimento mental às ordens do Estado em nome de valores específicos, por intermédio de tecnologias, convertendo a nossa cidadania em pessoas mais que previsíveis, teledirigidas, felizes e empanturradas com as mágicas pílulas mentais de nada!

É tentador considerar que o que é normal é bom e que quando as coisas são normais, não há razões para a preocupação mas a nossa história[11] prova-nos o contrário dado não podermos confiar nos nossos juízos de valor. Leia! Não queime livros ao não lê-los. Felizmente ainda temos bibliotecas públicas e escolares que nos permitem, à borla, aceder à leitura, para além dos vários sítios da internet com a possibilidade de downloads de milhares de livros. Não seja um encarrapato de cenoura. Leia! Leia bem! Ao não ler está a queimar livros com a mente [12] porque os livros também fazem parte da essência do conhecimento. Um povo que lê bem é um povo desenvolvido e não encarrapato. Por favor, não seja um encarrapato servil[13] e descerebrado, leia e questione com inteligência e sem medo!

Carlos M. B. Geraldes (Ph. Dr.)

 

 

 

 

 

[1] Krastev, Ivan, O Futuro por contar, como a pandemia vai mudar o nosso mundo, edição Objetiva, Lisboa, 2020

[2] Anthony Burgess, A Laranja Mecânica, edição Alfaguara Portugal, 2012 

[3] Evgueni Zamiatine, Nós, Editorial Antígona, 2017

[4] George Orwell, 1984, Editorial Antígona, 2012

[5] Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, Editorial Antígona, 2013

[6] Jeremy Bentham, El Panoptico, Editor: ENDYMION, 1989.

[7] Aristófanes, Os Cavaleiros, s. e. , Col. Clássicos Gregos e Latinos, Edições 70, 1115-1120 Lisboa, 2004.

[8] Benjamin Coriat, El Taller Y El Cronometro: Ensayo sobre Taylorismo, El Fordismo, Editor: SIGLO XXI 1993.

[9] Https://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Cheskin

[10] Moore, Martin, Democracia Manipulada, Editor: Self PT, 2019

[11]  Frankopan, Peter, As Novas Rotas da Seda. O presente e o futuro do Mundo, Editor: Relógio D'Água, 2019

[12] Ray Bradbury, Fahrenheit 451, edição: Saída de Emergência

[13]  La Boétie, Etienne, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, Editorial Antígona, Lisboa

- 05 out, 2020
- Carlos M. B. Geraldes