Os manuscritos não ardem (era bom)
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A frase que roubei para título é talvez a frase mais conhecida de O Mestre e Margarita, o romance sobre o diabo (ou será romance do diabo?) de Mikhaíl Bulgákov. Há livros para os quais precisamos de tomar balanço. Andam anos a fio a espreitar-nos e a assombrar-nos sem sucesso nas estantes e mesas de cabeceira, até ao dia. Este foi um deles, entre muitos, demasiados para os dias que temos de vida, “tantos livros, tão pouco tempo”, dir-nos-ia Frank Zappa. O Som e a Fúria de William Faulkner deu cabo de mim durante a quarentena. Há muito que um livro não me macerava assim o cérebro. Oh, empreitada do catano! Decidi que o Ulisses de Joyce irá continuar ali, especado a olhar para mim, depois de uma partida em falso de vinte ou trinta páginas vai para uma década. Ainda não estou maduro o suficiente. Fica para o ócio e a paciência da velhice ou para a vida que se lhe segue. Das duas, uma.
Já vos deve ter ocorrido isto de haver livros em que nos demoramos de propósito, em que fazemos um compasso de espera, com medo que terminem demasiado rápido. Livros em que lemos as palavras e as frases uma e outra vez para as degustar, tratando-as como se fossem preliminares e esforçando-nos por prolongar o prazer até ao limite do humanamente possível. Assim de repente, lembro-me d’O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, o 2666, de Roberto Bolaño, Mataram a Cotovia, de Harper Lee, Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, ou 11/22/63, de Stephen King. Sim, tento ser eclético. Terá havido mais, mas agora não me lembro. Tal como é usual suceder com as listas de livros, filmes ou músicas preferidas, quando somos apanhados de supetão num daqueles questionários estivais e a memória se esvai sem pedir licença. Demorei demasiado tempo a pegar-lhe, pronto, é isso. Com Mataram a Cotovia sucedeu a mesma coisa. Seja como for, O Mestre e Margarita entrou para um dos lugares cimeiros não fixos da lista dos livros da minha vida. Aquela que deixamos aos nossos filhos e que ajuda a compreender a pessoa que somos/fomos.
Mas ao que interessa, consta que Bulgákov leu os capítulo iniciais ao editor Nikolai Angárski e que este lhe terá dito: “É impossível publicar isso”. Um “romance sobre o diabo”, foi assim que Bulgákov chamou ao seu “romance do ocaso” numa carta a Estaline em que aproveita para descrever a sua situação de escritor constantemente atacado, escarnecido e banido pela crítica oficial. Conseguiu um telefonema de Estaline, mas não mais que isso. Foi perseguido e interrogado pela Polícia Estatal e muitos dos seus manuscritos foram confiscados. É neste ambiente de opressão que, apesar de tudo, ou por tudo isso, Bulgákov escreve este romance. Não sabe se alguma vez o publicará. Duvida disso. Os amigos, para quem vai lendo os excertos, duvidam ainda mais e desencorajam-no. Mas não desiste. Insiste.
As primeiras ideias para a obra surgem na década de vinte. Uma das versões foi queimada pelo autor em 1930. Recomeça. Muda a maior parte. Revê. Uma e outra vez. Até poucas semanas antes de morrer, em 1940, consumido pela doença. Tinha 49 anos. É Elena Bulgákova, a sua companheira, que fica incumbida de eliminar as pontas soltas. Mikhaíl deixara uma série de notas que ela se encarrega de respeitar. Fica na gaveta cerca de 26 anos, à espera da luz do dia. Elena jurou-lhe que seria publicado e cumpriu. Sem cortes, só em 1967, em Paris. Continuará, nos anos seguintes, a ser modificado e acrescentado. A essência manteve-se sempre.
A acção de O Mestre e Margarita centra-se nos dias que antecedem o Domingo de Páscoa. Somos transportados para a cidade de Moscovo dos anos 30, onde o romance abre e fecha, e para a Jerusalém do século I d.C., antes da morte de Cristo, onde decorrem alguns capítulos que vão sendo intercalados na narrativa principal. Também é Páscoa em Jerusalém. No centro histórico de Moscovo, no Parque do Lago do Patriarca, um poeta medíocre (Bezdómni) e um dirigente de uma associação de escritores do regime (Berlioz) discutem a mais que óbvia não existência de Cristo.
“Não existe religião oriental em que uma moça virgem não desse à luz um deus – dizia Berlioz. – Ora, os cristãos, na mesma senda, sem inventarem nada de novo, criaram o seu Jesus, uma figura que nunca existiu na realidade.”
Está dada a deixa para que o tinhoso se manifeste, pois que negar Cristo – o bem – é também negá-lo a ele – senhor do mal, e isso ele não pode tolerar. Surge-lhes de repente, na figura que os dois entendem tratar-se de um estrangeiro, um indivíduo que “não coxeava de perna nenhuma, a estatura não era pequena nem enorme, mas alta, simplesmente. Quanto aos dentes, notava-se-lhe do lado esquerdo umas coroas de platina e, do direito, coroas de ouro. Usava fato cinzento caro e sapatos estrangeiros de tom a condizer. Levava boina cinzenta galhardamente à banda e o castão da bengala era uma cabecinha de cão-de-água. Pelo aspecto, teria quarenta e tal anos. A boca parecia torta. Cuidadosamente barbeado. Cabelo escuro. O olho direito negro, o esquerdo verde, vá-se lá saber porquê. Sobrancelhas pretas, uma mais acima do que a outra.”
E é isto, nunca esperamos que um “agarradiço” demónio nos surja de “boina cinzenta galhardamente à banda”. Vem espicaçar e dominar a conversa sobre a (in)existência de Deus e até Kant traz à baila. Descosendo-se quase nada, acaba por conceder ser um professor, especialista em magia negra, que assegura ter conhecido Jesus (Yeshua) e Pôncio Pilatos. Não tardará muito até que o caos esteja lançado sobre Moscovo e nos seja dada a conhecer a comitiva de Woland, desfilando perante os nossos olhos Koróviev, Azazello, Gella e Behemoth, um grande gato preto e falante, apreciador de xadrez, armas e vodka, não necessariamente por esta ordem. Verdade seja dita, é ao diabo que cabe o papel principal, escarrapachando os homens em toda a sua plenitude, ora cobardes e fracos, ora capazes de se transcenderem e sacrificarem por tudo aquilo em que acreditam. A tormenta que cai sobre Moscovo visa sobretudo a vaidade, a ganância, a sobranceria e a credulidade interesseira da elite soviética. Porque há sempre uns que são mais iguais do que outros, mesmo nas ditaduras do proletariado.
“(…) no romance de Bulgákov a corja demoníaca cumpre uma missão de vingança, ataca, humilha e achincalha a mentira, a traição, a cobiça, a maldade dos homens, em defesa do bem e da verdade.”
Será sempre um lugar comum dizer de um livro que apresenta vários níveis de leitura, mas é isso que também aqui está em causa. São poucos os livros a que voltei. Parece-me que este será um deles. Tenho por certo que irei encontrar nele sempre algo de novo. Claro que também ajuda haver homens transformados em porcos, em vampiros, bruxas nuas a voar em vassoura pelos céus de Moscovo, funcionários que perdem literalmente a cabeça, um escritor maldito que, tal como Bulgákov, queima a sua obra, Johann Strauss a dirigir uma orquestra num grande baile de Satanás e Jesus na cruz, densamente coberto de moscas e moscardos gordos que, “nas virilhas, no ventre e nos sovacos”, lhe sugam o “desnudo corpo amarelo”. And so on and so forth…
Não é fácil dizer de que trata o livro. Bem, é uma história de amor. Ou melhor, também é uma história de amor, daquelas que persistem para além da vida. É uma sátira corrosiva à ditadura estalinista. É uma nova perspectiva sobre Pôncio Pilatos e a crucificação de Cristo. É um tratado filosófico sobre o Bem e o Mal, a coragem e a cobardia, a inocência e a culpa. Escrito em segredo durante a penumbra estalinista, tendo como grande referência o Fausto de Goethe, tornou-se um fenómeno literário assim que foi publicado. É um símbolo da liberdade artística onde quer que seja. É uma narrativa prenhe de humor negro de onde emerge uma poderosa crítica política e social à sociedade da época (e posterior), seja no inferno burocrático, nos “desaparecimentos” inexplicáveis de cidadãos ou no espírito de delação que se incentivava. É um murro nas trombas da repressão. O Mestre e Margarita é tudo isto e mais uma dúzia.
É impossível não sentir empatia por este Diabo de Bulgákov, entidade que provoca em nós uma sensação de estranha inquietude (“das unheimliche”, dir-nos-ia Freud). Não é fácil conseguirem levar-nos a torcer por aquele que é suposto ser o vilão da história. Não estamos habituados a isso. Não fomos educados para isso. Mas este não é um demónio qualquer, como Bulgákov nos dá a entender na epígrafe de Goethe (Fausto) que dá o mote ao romance.
“… quem és, afinal?
- Sou parte daquela força que deseja eternamente o Mal e faz eternamente o Bem.”
Não é um demónio que devamos combater, mas que veio para denunciar e ensinar. Temos apenas de nos sentar e beber com ele. Aproveitar o que nos diz sobre nós mesmos.
Bulgákov não foi um homem sem medo, mas não lhe soçobrou. Desafiou o estalinismo e raramente fez concessões. Recusou-se a fazer arte proletária, sem humor, sem sátira, obediente. “Ele não é dos nossos!”, esbravejavam os comunistas. Poucos escritores e dramaturgos compareceram ao velório de Mikhail Bulgakóv. A maioria temia a polícia secreta. Consta que é o livro favorito da maioria dos russos. Não o será de Vladimir Putin e dos seus acólitos. Veremos quantos manuscritos lhe resistem, quantos chegarão a ver a luz do dia e se haverá algum da estirpe deste de que aqui se trata.
Penso que esta terá sido a primeira vez que escrevi sobre um livro. Como será evidente, alonguei-me um bocado.
Citações retiradas de:
BULGÁKOV, M. (2015), O Mestre e Margarita, Editorial Presença
- 30 ago, 2020
- Miguel Cardoso