O interior: um impasse mental ou a possibilidade de novas soluções para Portugal?
Voltar
Sá de Miranda, 1481 — 1558, numa Carta, a António Pereira, Senhor de Basto, aborda o problema da dualidade cidade/ campo a propósito da partida do seu amigo para a corte.
A cidade de Lisboa simboliza o desconcerto e surge como "fonte de todos os males,"[i] nomeadamente do despovoamento do reino, celebrizado pelos famosos versos "Mas temo-me de Lisboa/ que, ao cheiro desta canela,/ o reino nos despovoa".
Na sequência da carta, Sá de Miranda, numa escrita no melhor do seu estilo continua a sua crítica ao agir governativo do reino. Afirmando que os "milagres de Portugal" são vistos ironicamente, isto é, como decorrentes de uma política económica equivocada, que estocava mercadorias perecíveis, sem organizar a sua venda, "pagando o pato":
Onde se há de lançar tanto?
Aquilo é pagar o pato!
(...)
Que contas vão tão erradas!
Enfastia o que sobeja;[ii]
Ora, o reino, passados 462 anos e salvo as diferenças temporais, continua, no seu espaço, a ser firme no seu paternalismo centralizador, conservador, e a insistir na clivagem, entre o interior e o litoral, como resposta: ao invés de dispor, convenientemente, de um inovador pragmatismo político e não de um mero atormentar de quem o habita. Isto é, nem a intervenção pública e nem o mercado têm sido eficientes para reforçar, fortalecer e reanimar todo um comunitarismo que atenue a dicotomia interior/litoral. Aliás, fica-se com a sensação de que alterar o horizonte mental é não só tarefa hercúlea como também um tormentório ante um modo pensar que ainda apresenta enviesamentos de uma ideia de interior como sendo o lugar, salvo as variáveis temporais, onde «as pessoas que ali vivem [no interior] estão ainda muito arreigadas às suas tradições e modos de vida seculares. Se lhes levarmos o progresso de repente, perturbaremos gravemente os seus equilíbrios naturais. Por exemplo, se acabarmos com as fontes e lhes levarmos a água a casa, as mulheres já não terão de ir todas as manhãs com o cântaro à fonte: como é que elas hão-de poder pôr a conversa em dia umas com as outras?»[iii]
Do referido podemos aduzir que a clivagem interior versus litoral para além de ser um problema geográfico é, acima de tudo, um problema de incapacidade do Estado em agir, criando condições efetivas, para que o impasse não se agrave mais. Daí urgir a necessidade de uma nova narrativa onde a reciprocidade, litoral /interior, apresente não uma retórica/linguagem vazia de conteúdo mas uma inclusão, uma obrigação e uma intencionalidade.
Tudo tem que ser mais do que um sistema de meras crenças afastadas da realidade efetiva. O caminho tem que ser diferente, para reconfigurar o viver no interior, caso contrário o litoral não será mais do que um “ litoral rottweiler”.
O Estado tem que ser ético com as suas obrigações de modo a que a identidade territorial não se desentrelace. Deixando os menos “ afortunados” apegados a um estatuto diminuído.
A pertença tem que ser efetivamente partilhada.
Neste sentido é-nos pertinente colocar as seguintes questões: O que podemos fazer? Como evitar os choques?
Como resposta podemos enumerar/sugerir alguns desafios a não descurar:
- Reconhecimento de obrigações por parte do litoral, dado não ser tão dependente economicamente como o interior, através da reciprocidade;
- Restabelecer o interior como um território inclusive;
- Aproveitar a globalização inteligente, implantando clusters de conhecimento e de produção, para que o declínio das cidades, vilas e aldeias de província não seja efetivo;
- Após uma discussão séria, introduzir um princípio auxiliar de solidariedade para com o interior de modo a poder-se financiar a construção de infraestruturas, eternamente adiadas, por exemplo, no interior das beiras, Litoral e Baixa, a via transerrana, Coimbra, Lousã, Pampilhosa da Serra, Arganil, Covilhã, Fundão, Penamacor, Toledo, túneis na serra da Estrela, IC6, apetrechar os serviços de apoio às populações com todas as valências e etc. Alocando-se assim recursos de modo eficiente evitando-se a distorção do território;
- Reabilitar as cidades, vilas e aldeias à escala da história local;
- Emigração controlada e integradora;
- Apoiar as famílias quando é mais relevante: antes da escola;
- Olhar para as escolas, dotando-as de técnicos, como locais de apoio;
- Atividades de apoio para além da escola;
- Parcerias efetivas entre as escolas, universidades, politécnicos e as empresas;
- Fixar o horizonte laboral. Trabalhar com um propósito;
- Refrear a divergência social;
- Fazer da democracia digital, não vigilante/autoritária, uma oportunidade efetiva para tornar as populações informadas e, simultaneamente, gerar uma sociedade civil mais crítica e autoexigente quanto aos deveres;
- Saber aplicar os escassos recursos financeiros, de forma inteligente e útil para os cidadãos, dado sermos um país pouco dotado de riqueza;
- Criar uma nova narrativa assente em obrigações recíprocas e num comunitarismo territorialmente partilhado e isento de menoridades paroquiais.
Posto isto, quem governa, convém nunca esquecer o que é o interior e o que pode ser. Caso contrário, continuaremos a ser um povo resumido, como alguém acidamente sintetizou os personagens do romance Os Maias,[iv] Eça de Queirós, a uma “galeria de tipos lusitanos”.
Carlos M. B. Geraldes, (Ph. Dr.)
[i] GARCIA, Alexandre M, org., Poesia de Sá de Miranda, Lisboa, Comunicação,1984.
[ii] Ibidem, 86
[iii] Freitas do Amaral, Diogo, O Antigo Regime e a Revolução, ed. Bertrand/Nomen, 1995, p.62
[iv] Eça de Queiroz, Os Maias, edição: Livros do Brasil
- 27 ago, 2020
- Carlos M. B. Geraldes