Devaneios? Reminiscências?
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O dia em que chegava o carro da biblioteca era festa: subir aquela escadinha e ver a maravilha de cores e tamanhos… Meus Deus tantos livros! Ai quem me dera que todos fossem meus! Aquele cheiro dos livros, o cheiro das palavras… Loucura! Sim, era uma loucura! E era-me permitido tão pouco de cada vez! Não podia levar um braçado de livros ou uma abada para que a magia se repetisse, as viagens se prolongassem! E a vinda do carro não era todos os dias, na minha aldeia, pois claro! Aquele odor, aquelas cores e formas, aquela fantasia trazia o sonho, muitos sonhos a quem desejava viajar. Viajar …. Realmente, era impossível! Estaria longe de realizar viagens físicas, mas através das palavras, “palavras em fila”, as minhas viagens deliciosas eram ansiadas, no quarto com várias camas ou na Casa do Covão.
A infância marca muito a nossa vida e quando a família é grande, mais se aprende, se vive, se experiencia. E é nas escadas de caracol, nos recantos da casa, nos lugares misteriosos do quintal, onde as maravilhas da criação se multiplicam num desenfreado labor, também ele misterioso na bênção ao Criador, é também em cada um desses deliciosos e perfumados espaços que as escondidas permitem adensar ainda mais os sonhos de conquista, as palavras em projetos de poemas, as fantasias douradas de cabeças cheias de mistérios, de desejos ou de medos.
Pois, e quem não gosta de sonhar?
Um dia, um concerto, um megaconcerto da Gulbenkian, numa cidade do interior fascinou-me. E o meu sonho adensou-se: tenho que cantar um dia! Sempre cantara nas festas da Escola, nos concertos do Liceu, nos grupos da Paróquia! Mas o ideal era poder cantar na Gulbenkian, pertencer ao coro … E novo sonho se adensou na cabeça de uma mãe que tinha tanto para trabalhar: na escola, na casa, na igreja… Quando poderia concretizar essa aspiração? Sim, poder cantar e levar mais longe as palavras, nem que fossem deitadas ao vento. Esse vento que leva os sonhos, as vozes, os gritos ou os gemidos. “É no monte que eu te oiço”, mas não só, pois o vento também ecoa nos quintais, nos pomares e nas hortas levando as palavras e os anseios, trazendo notícias ou ânsias … “Pergunto ao vento que passa…”
Escrever…. Outro sonho adormecido, talvez mesmo nunca sonhado! Uma quimera, pois como poderia eu pensar em escrever e ser lida por outros? Vergonha? Acanhamento? Falta de coragem? Tudo, mas não só! Não, esse era um patamar inatingível! O meu pensamento nunca poderia chegar a esse nível, o meu desejo nunca poderia ser esse, o meu futuro nunca poderia passar por aí!
E as palavras iam-se desenhando em folhas de papel ou cadernos que amareleciam em gavetas, caixas e caixinhas, como se esfumassem desejos impossíveis, realidades nunca prováveis de desejar, de concretizar…
Pois bem, que os meus devaneios, em cada engavetamento desenhado, levem a cada leitor o mesmo desejo de escrever, de libertar as palavras, nesta época em que ainda os cravos de abril nos deixam plenos do cheiro a Liberdade.