Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

A cachopa, o caso do casamento forçado e a cravagem de centeio - 2.ª parte Voltar

Celebrou-se o casamento na igreja matriz do Paul. A troco de uma anafada bolsa de moedas, o padre Proença foi o ministro do sacramento que se queria apressado. Os padrinhos da rapariguita vieram detrás da serra. O abastado agricultor de Oliveira do Hospital, que fora testemunha no processo que arremessou João Brandão para o desterro, tinha uma dívida de azeites para com os pais do noivo.

 O tempo estava pálido, a borrasca assoprava nas bentas da aldeia, que se confundia com a ribeira que a alimentava. Um vento gelado arruma-se do lado das Pedras Lavradas, encharcadas por forte nevão. O vento uivava, violava o recato do futuro largo do Conde do Refúgio e a rua da Igreja. A cachopa fungava com os olhos muito avermelhados, mas sempre bela. O seu vestido branco imaculado, muito rendilhado, fora encomendado à modista Anna Esther Candida Serra, com casa na Rua Direita n.º 11, na Covilhã. Ao fundo do baptistério, muito colado à parede, muito disfarçado, o cantoneiro do Tortosendo esmoía ódio, queria a pequena só para si! 

Os convidados recolhiam-se apressadamente à igreja, construída nos finais do século dezoito. O presbítero Joaquim dos Santos Proença, prior colado da freguesia da Nossa Senhora da Anunciação do Paul, sentia nos seus braços, já avelhados, o peso do “Missae Propriae Sanctorum”, um livro de 1792 editado na Olisipone (ex tipografia Régia). O padre do Paul já sentia o roncar do estômago glutão. O cheiro da carneira que embrulhava o missal enjoava-o. Ao sacristão, que olhava de esguelha, muito atiradiço, para noiva, pede que lhe traga um cálice de vinho do Porto. Aquele de 1865 que lhe calhou nas cláusulas testamentárias da Senhora Viscondessa do Tortosendo. Pedia muito humildemente aos convidados que se arrumassem silenciosamente na casa de Deus.

A rapariga que na clandestinidade conversava com o cantoneiro do Tortosendo, estava ali para se entregar, contra a sua vontade, a um agricultor, muito endinheirado e já maduro. Impuseram-lhe o casamento com um homem já avelhado, muito violento e que já não tinha precisão de mulher. Que vira algumas meninas pobres dos Vales e do Dominguiso a namorá-lo, mas que desconfiara que lhe namorassem o seu dinheiro. Já não tinha queda para o sexo. Detestava-o!

As velhas e desengonçadas matronas, que não tinham sido convidadas, cocavam de longe. Previam que a primeira noite nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, a cachopa já não seguia virgem. Umas línguas venenosas!

E assim foi! Ao terceiro dia já andava uma fona no domicílio conjugal. A Maria José não correspondia à afeição que ele lhe dedicava. Nessa noite, o José Lopes, muito erecto no seu leito conjugal, pedia à pequena para tirar a camisa e o colete, pois desde que dormia com seu marido, nunca o fizera. Sussurrava-lhe que esta se estragava mais de noite do que de dia. Ela, de muitos maus modos, repele-o. Que se se rompesse não era às custas dele, pois que era um sovina. O Lopes pô-la fora da cama: - “Fora, fora”, “Raios te partam! Estupor, sua alma do Diabo!”; chama-lhe de sendeiro, pandeiro! A sogra, uma antiga fiadeira no lugar de PeroMouco, tentava acalmar os distúrbios. Até o bichano começa a pernoitar fora. Não vá apanhar com um tacho, negro como o chamiço, nos seus imperiais bigodes! Já se resmungava que a cachopa abandonava a sua casa e passeava-se pela alheia! O marido, desconfiado proíbe-a de sair de casa. Só serviços de cozinha e demais serviços de porta para dentro!

No domingo seguinte, após a missa da manhã, o Zé Lopes começou a sentir-se agoniado e a sentir umas labaredas no estômago. Sentia a cabeça muito pesada. Uma beberagem de flor de sabugueiro limpou-lhe as tripas. A mulher não ligou nenhuma ao seu sofrimento. A cachopa vai à taberna e compra dez réis de café. Mais náuseas e vómitos! Só as sopas de migas da rica mãe lhe atenuaram, por breves momentos, o desconforto. Sai um chazinho de hortelã, feito pelas mãos de fada da cachopa. Arruma com o marido! A sogra, que também bebera, sente-se incomodada. Já andava “com a pulga atrás da orelha”! Procura na cafeteira, encontra três pedras brancas, que lhe despertou suspeita. O filho contorcia-se com dores, transpirava abundantemente, queixava-se da garganta. Chama o barbeiro Rodrigues Simão, que era “olho vivo e pé ligeiro”! Diz logo que é arsénico! Enfia pela bocarra abaixo do envenenado, azeite, leite e um vomitório de tártaro! A coisa funciona, o Zé Lopes “não vai desta para melhor”!

As autoridades do Paul prendem a envenenadora. Um grupo de mulheres, muito histéricas, muito invejosas, queriam fazer justiça pelas suas mãos!  O Regedor e o Juiz eleito, que já tinham sido incomodados pela justiça ordinária, arredam o mulheredo à paulada e entregam o seu destino à justiça da Covilhã. Aa juiz António de Figueiredo, um magistrado que vivia ainda no século passado e produzia umas decisões muito avelhadas. Condena a Maria José na pena de prisão por toda a vida!  Não a leva ao pelourinho porque a lei já o não permite!

O Delegado do Procurador Régio, António Antão da Silva Rosa, não quer acreditar! Uma moça de dezasseis aninhos, bom comportamento anterior, repelida de casa de seus pais, forçada a casar com um velho, ficar a ser sustentada pelo Estado pelo resto da sua, ainda, longa vida? A pena é violentíssima e ofende a consciência humana! Com o devido respeito, apelava de tal decisão para a Relação de Lisboa.

Os desembargadores Barão do Tâmega, Forjaz, Aguiar, Mexia Salema concordam. Atiram ao juiz da 1.ª instância uma estrondosa injúria judiciária! A decisão, lavrada nas encostas da Estrela, envergonham os novos valores. Que os tribunais têm o dever de acatar!

Mas o legislador também não escapa! Mas porque raio não podem aplicar a pena de trabalhos públicos às mulheres! O Barão do Tâmega, danado para a brincadeira, não perde a oportunidade. Que agora já entendia a expressão “sexo fraco”! Os do “sexo forte” riem-se muito da piada de S. Ex.ª!

A Maria José é uma cachopa de dezassete anos, do crime não resultou a morte do ofendido, que se mantém no gozo pleno das suas faculdades. Chegou mesmo aos ouvidos, sempre atentos, dos senhores Desembargadores que o tipo já andava a catrapiscar passarinhos novos, ao longo do vale do Zêzere. Reduzem-lhe a pena a oito anos de prisão maior celular.

- 24 jan, 2023