Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Os juros sob o olhar da Igreja Doutrora Voltar

Vivemos tempos difíceis. Mas parece avizinharem-se tempos ainda mais difíceis. Estes caraterizados por uma crescente incerteza e com tendência para gerar uma crise acentuada a curto prazo. A diretora-geral do FMI declarou recentemente que a situação económica mundial “ainda vai piorar antes de melhorar” e que “os riscos em torno de uma estabilidade financeira estão a crescer”. Foi um acumular dos impactos das crises pandémica, climática, energética, política (Brexit, guerra na Ucrânia), económica (inflação, aumento das taxas de juro, disrupções nas cadeias de abastecimento, crise do Banco Crédit Suisse, etc), que “está a conduzir para um possível cenário económico de estagflação prevendo que se possa estender pela próxima década”.

Foi noticiado há poucos dias que o Banco Central Europeu (BCE) sobe as taxas de juro em mais 0,75 pontos percentuais. A ideia do BCE é controlar a inflação, mas o risco de recessão na zona euro e em Portugal agrava-se.

Ora bem, o juro era, nos primeiros tempos da Igreja, e mesmo antes de Cristo, condenado, mormente quando se direcionava para a usura. Por isso mesmo os cobradores de impostos eram homens mal vistos e odiados pelos contribuintes da época. Recordemos o episódio do Evangelho do 31º Domingo do Tempo Comum quando Jesus atravessava a cidade de Jericó (já lá estive por duas vezes) e Lhe surge um homem, de pequena estatura, chamado Zaqueu, chefe dos publicanos e rico (cobrador de impostos), sentindo necessidade de subir a um sicómoro (de facto, existem lá muitos), que prometeu a Jesus, recebendo-O alegremente em sua casa, dar metade dos seus bens aos pobres e, naquilo que tiver defraudado alguém, restituir-lhe o quádruplo.

A condenação da usura prolongou-se por muitos séculos. A preocupação muito antiga de proibir ou limitar a remuneração (juro) do mutuante explica-se pela natureza particular dos empréstimos em tempos mais recuados, geralmente destinados a fazer face aos gastos entre duas colheitas. Se o juro não fosse limitado, os camponeses ficavam à mercê dos usurários que podiam, com as suas exigências, levar os mutuários ao extremo de se venderem como escravos para pagar dívidas.

Os filósofos gregos começaram por se manifestar contra o juro. Aristófanes desaprovou-o, Platão (428 a 347 a.C.) e Aristóteles (384 a 322 a.C.) consideravam o juro contrário à natureza das coisas. Os Romanos tomaram posições idênticas. Catão (234 a 149 a.C.) equiparou o juro ao homicídio; Séneca (3 a.C. a 65) e Plutarco (35 a 120) condenaram igualmente o juro. Mas as posições dos filósofos nem sempre foram as definidas nas leis ou as seguidas na prática corrente. Mais tarde, a Lei das Doze Tábuas (449 – 479 a.C.) limitou o juro máximo dos empréstimos a 12% ao ano. É que houve mesmo épocas em que os especuladores romanos chegavam a cobrar 48% ao ano. Marcus Julius Brutus (84 a 42 a.C.), líder político militar romano, um dos assassinos de Júlio César, foi um dos prestamistas que emprestava a este juro.

Para a Igreja, usura era toda a operação que implicava o pagamento de um juro. Assim sendo, o comércio e a banca intimamente relacionado com o juro, eram atividades interditas, ficando os mercadores e os banqueiros sujeitos à excomunhão, o que na Idade Média era uma penalização muito mais temida pelos cristãos do que seria mais tarde. Consideravam o juro contrário à misericórdia e ao humanismo. A situação acabou por mudar depois dos Concílios de Arles, Niceia e Elvira e era condenável apenas um juro cobrado por clérigos. Só a partir do Terceiro Concílio de Latrão (1170) e de Lyon (1274) é que a repreensão era também aplicada a leigos. A Igreja partia de dois pressupostos: um ligado à noção de tempo e outro ligado à profissão de comerciante. Quanto ao primeiro, considerava a Igreja que sendo o tempo pertença de Deus não era suscetível de ser vendido. E como juro era associado à ideia da venda de tempo, tinha de ser condenado. O segundo pressuposto estava relacionado com o conceito em que eram tidos os comerciantes. Os pensadores cristãos consideravam o comércio como associado à fraude e à avareza, fonte de contacto com mercadores e estrangeiros. Os jurisconsultos da época terão especulado acerca dos contornos do conceito de usura, permitindo depois chegar às soluções que justificaram uma flexibilização das posições da Igreja. Haviam-se já começado a ouvir as primeiras vozes discordantes. Assim, para essa flexibilização contribuíram também as opiniões de São Tomás de Aquino quanto á usura e aos comerciantes. Este homem de excelentes qualidades intelectuais, em 1274 foi pessoalmente convocado pelo Papa Gregório X a participar no II Concílio de Lion, como principal objetivo remediar a cisão entre as igrejas grega e romana. Adoeceu durante a viagem e morreu em 7 de março de 1274. Tomás de Aquino mostrou que entre fé cristã e razão subsiste uma harmonia natural. O motivo que mais determinou a mudança de posições da Igreja foi que os mercadores a financiavam largamente quando disso tinham necessidade. E, assim, a partir de determinada altura, vemos os mercadores a serem considerados pela Igreja como bons cristãos. A Igreja acabou por tolerar a usura e mais tarde admiti-la desde que não houvesse excessos.

- 19 nov, 2022