Os suínos e a Ana Borratta – 2ª parte
Voltar
Aquela sexta-feira, do mês de Janeiro de mil oitocentos e setenta, trazia novidades. A chuva caía fininha, gelada, enlameava o Terreiro das Marias! Dois lustrosos suínos roncavam felicíssimos, fuçavam a lama, conspurcavam-se. Um deles, o mais avantajado, estava prometido para a boda da Angélica, o outro era para levar à feira do Fundão, avaliado que estava em cinco mil réis. Até porque, em Janeiro um porco ao sol e outro no fumeiro!
Mais abaixo, no Beco dos Tanoeiros, algazarra-se, uma tal berraria que parecia o fim do mundo em dia de trovoada! A Joana Manteigueira e a Maria Porcina pegavam-se, afiavam as línguas saburrentas e gretadas: - “Velhaca! Desavergonhada! Boca de bácoro! Língua porca!” Bordoavam-se uma à outra!
Os suínos, assustados, muito eriçados, com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo, fogem à guerra das línguas, afastam-se do terreiro!
A Ana Borratta, escolhedeira de lã, anda chupadinha da cabeça! Agora deu-lhe para sonhar com porcos. Um verdadeiro chiqueiro! A Maria dos Anjos, uma mulher suja que nem um javardo e que casara com um almocreve das terras do Bandarra, rico que nem um porco, aventa que a má sorte lhe vai bater à porta!
Ultimamente, o seu homem, pisoeiro na Carpinteira, trazia a carteira do dinheiro sempre vazia, pesava tanto como uma bexiga de porco cheia de vento! A verdade é que o marido não lhe contava o seu vício. Todas as tardes, depois da labuta na Fábrica Velha, que bebe a sua força na Ribeira da Carpinteira, vai passá-las na casa do bilhar do Francisco da Cunha Soares, ao Pelourinho.
Um viciado no jogo do monte!
Mas, retornemos à estória!
A Borratta escuta barulhos, abre a porta que dá para a rua, dá de ventas com os suínos. Que maravilha, dois roliços porcos prontos para a matança. Sorrateiramente e num lambisco, despacha os roncadores, que fugiam do Terreiro das Marias, para a sua loja. Amassa-os com uma corda! O Zé Lopes queixa-se ao regedor da paróquia, alardeia pela vizinhança o desaparecimento dos suínos.
A Maria Manteigueira, useira e vezeira em coscuvilhar e assoalhar vidas alheias, escondida que estava na esquina da ruela, que levava até a Igreja da Nossa Senhora da Conceição, leva a novidade à autoridade! Que vigiassem a casa das ditas, porque não tendo porco algum, ouviu-os roncar numa loja. Perguntando às Borrattas se havia porco, disseram-lhe que não. Suspeitou logo delas!
O queixoso e a mulher puseram-se logo de atalaia, cocaram a noite toda. O frio desanca nos ossos, embrulham-se no grosso capote, escutam ruídos de animais. As galinhas cacarejavam muito, acordam sua Ex.ª o galo, que cucuritava muito ensonado. É que a manhã ainda vinha em casa de Deus! Os porcos dão de si, o Zé Lopes conhecia-lhes o roncar! Às cinco da matina sentem abrir um janelo, vêm assomar a cara feia, mal-humorada, da Borratta, que berra para dentro: - Ó alma do diabo que já fizeste roncar os porcos!
Agora é que a porca torce o rabo! José Maria da Silva Moraes, que tinha loja de serralharia na saída para a serra, logo pela manhã, invade o casebre das Borrattas, que se puseram de joelhos e com as mãos postas a seus pés. O senhor Regedor da Paróquia fazia-se de engraçado, está inspirado, atira esta expressão, muito gira, muito castiça, à cara do homem da Ana Borratta: - Quem com porcos anda, farelo come! Apreende os suínos e leva as manas Borratta e o marido, calado como toucinho no saco, para a cadeia, nesse tempo, gerida pelo terrível carcereiro José Maria Presunto. Linguajando Rafael Bordalo Pinheiro, que grande Porca!