Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Os invisíveis Voltar

Todos os dias olhamos mas não vemos pessoas invisíveis. Mas sabemos que estão ali, diante dos nossos olhos. Mas não as vemos. Cruzam-se connosco mas não as queremos ver. Fazem parte da geografia em que nos movemos, como as paisagens dos campos ou as estruturas da cidade. É gente que faz mas que não está no topo da hierarquia. É gente que não manda. É apenas gente que faz. É gente que não se exibe. São pessoas que cumprem as suas rotinas e os seus destinos. Têm vidas como as de todos os outros, com alegrias e tristezas. Mas não as mostram. Não se mostram. Seguem os seus caminhos de forma discreta. Não sobem aos palcos. Não têm aplausos e, na maioria das vezes, não recebem um simples obrigado pelas tarefas que desempenham. Sem eles isto parava tudo. Sem eles não tínhamos as coisas que necessitamos e que são essenciais para o nosso dia-a-dia. Todos temos os nossos ciclos de invisibilidade. Os que cultivamos e os outros que acontecem também por indiferença dos nossos pares por esta ou aquela razão. Mas isso são momentos e tempos que acontecem nesta roda em que nos movimentamos. São questões episódicas e de importância menor. Neste contexto não estou a referir-me a estrelatos ou de luzes da fama, seja lá isso o que for, em cada tempo das nossas vidas. Estou a pensar no simples reconhecimento do outro que acontece por um aceno, um simpático cruzamento de olhar ou um fraterno “bom dia.” Infelizmente, o tempo da nossa atualidade tem vindo a acentuar o culto da indiferença e do individualismo. Estamos sozinhos na multidão que a todo o instante lança um manto de invisibilidade sobre quase todos para endeusar uns quantos que não fazem mas que mostram que fazem. A arte de saber mostrar é premiada. O fazer sem marketing é ignorado. A gentileza e os afetos que deviam estar presentes nos pequenos gestos e atitudes de todos os dias passam para um plano secundário ou mesmo para os campos da indiferença. Focamo-nos acessório. No que brilha por momentos. Esquecemo-nos de valorizar o melhor de nós, a essência da humanidade que foi distribuída por todos e não só para alguns, ao contrário do que se pensa por aí. A indiferença mata. A invisibilidade destrói. Só temos uma vida. É essa que temos de respeitar e valorizar. A nossa e a dos outros. Nem todos sabem enfrentar e combater a invisibilidade a que são votados. Muitos encolhem-se e diminuem-se para caberem nas vidas dos outros. Suplicam um sorriso, um gesto de afeto ou mesmo um beijo ou um abraço perdidos. Entretanto, lançamo-nos em corridas desenfreadas para lado nenhum. Não prestamos atenção a nada e nem a ninguém. Vivemos numa espécie de sociedade líquida onde, como refere o sociólogo Zygmunt Baumant “corremos sobre gelo fino. Se pararmos ou diminuirmos a velocidade, o gelo parte-se e nós podemos morrer. Então corremos. Não importa para onde, o importante é correr. E rápido.” Neste processo somos cada vez mais indiferentes. Alimentamos os mantos de invisibilidade dos que nos rodeiam. Estamos conectados a tudo o que mexe. A tudo o que acontece. Mas nunca nos sentimos tão sozinhos. Andamos perdidos no meio das multidões num autêntico registo de solidão acompanhada. Para recuperarmos o tempo perdido nas veredas da indiferença temos que olhar e ver o que acontece. Prestar atenção e agradecer a quem faz as coisas simples e as complexas. É tempo de resgatarmos todos os que pudermos à invisibilidade. E para o fazermos não precisamos de realizar um grande esforço. Precisamos apenas de cumprimentar as pessoas e dizer “bom dia” aos que passam diante de nós, sobretudo aos que seguem cabisbaixos pelo peso da indiferença e da invisibilidade. A vida passa a correr. Nós podemos atrasar os ponteiros do relógio se vivermos mais devagar, procurando valorizar todos os que fazem resgatando-os das geografias da invisibilidade e da indiferença. Ao cumprirmos esse desígnio estamos a resgatar-nos dos caminhos frios do individualismo e de vidas sentido apesar de todas as montras de visibilidade por onde temos passado. Os invisíveis estão aí à nossa frente. Se nós quisermos podemos vê-los. Se nós quisermos podemos tudo. Até reforçar a humanidade que reside em nós mas que, por corrermos tanto para lado nenhum, a fomos tornando cada vez mais invisível.

- 29 jul, 2022