Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

O último Natal no convento Voltar

Covilhã, convento de São Francisco, corria o ano de 1833, era noite de 24 de dezembro.

Pelas frestas da janela entrava um ar frio, mas delicado que descia da serra, perfumado primeiro pelas giestas e urzes e depois pelos alecrins e alfazemas da cerca. Frei Damião aconchegava-se no enxergão, olhava a parede branca, agora parecia-lhe mais alva devido ao reflexo da lua na neve que cobria as grades do sobreclaustro.

Na parede, uma imagem de Santo António, em papel, ao lado de uma cruz em madeira tosca, revigorava-lhe a fé mesmo sabendo que provavelmente aquele seria o último Natal passado no convento.

Relembrava os Natais da sua vida. Os da infância, passados em casa dos pais, junto ao lume onde a mãe fritava filhoses, numa caldeira segura pelas cadeias que pendiam dos negros caibros que amparavam as telhas, por entre as quais se esgueirava o fumo e entrava o frio. Lembrava o primeiro Natal passado no convento quando, ainda noviço, foi convidado pelo guardião para alumiar o Deus-Menino, com um archote, na procissão do “Venite et Adoremus”.

Nunca tinha sentido tamanha alegria. Os olhos dos frades brilhavam quando saiam das suas celas para beijar o Menino Jesus, depois seguiam em cortejo, com pavios acessos, até ao lugar do Pregão das Almas e daí até à igreja, cantando “Christus natus est nobis, venite et adoremus”.

A beleza indescritível daquele momento repetia-se ano após ano, apontando sempre para um mistério que envolve e transcende o ser humano.

Mas naquele ano seria diferente, eram apenas nove os frades que viviam no convento, não havia já estudantes, noviços ou esmoleres. Desde junho que se adivinhava o pior, José Silva Carvalho proibira a admissão às ordens sacras. A crescente onda anticlerical ganhava cada vez mais adeptos.

Frei Damião interrogava-se quanto ao futuro e pedia que naquele Natal lhe fosse dado um sinal. Sabia que dentro de pouco tempo se iniciavam as cerimónias do nascimento de Cristo, que à meia-noite, de todos os pontos do horizonte se elevavam na noite, os repiques dos sinos das aldeias mais afastadas. Era uma melodia suave, cantante, harmoniosa que o vento levava ou trazia alternadamente, e o sino do convento já não tocava desde que uma trovoada destruíra o campanário, tendo sido depositado na cela do Guardião.

Três pancadas secas retiraram Frei Damião dos seus pensamentos, correu para a porta. Frei Francisco da Conceição Santa Ana trazia uma imagem do Menino Jesus, era ladeado por Frei Manuel de Santa Rita e por Frei José de Nossa Senhora do Carmo, seguiam-nos Frei António de Santa Delfina, Frei José da Soledade, Frei Manuel dos Anjos Cherubins, Frei Joaquim da Piedade Sarzedo e Frei Manuel do Coração de Jesus Covilhã. O cortejo dirigiu-se pelo corredor do sobreclaustro em direção ao dormitório dos estudantes, junto ao qual se localizava a escadaria que dava acesso ao piso inferior. Ao passarem em frente à cela do guardião ouviram o repicar de um sino, julgaram que o som vinha da igreja de São Salvador do Mundo, mas depressa verificavam que os timbres eram distintos. Era o sino do seu convento que tocava sozinho dentro da cela. Era o sinal que Frei Damião pedira. Felizes, dirigiram-se à igreja iluminada de círios brilhantes onde os esperava o presépio, evocação da noite sagrada celebrada em Greccio pelo seu Santo Padre Seráfico (assim chamavam os frades a São Francisco).

Por toda a vila da Covilhã acendiam-se fogueiras nos adros das igrejas, o rapazio gritava, “aí vai arame” lançando vides, silvas e lenha para as chamas. Ouviam-se alegres cânticos de Natal, aqueles cânticos que tantas gerações haviam cantado, aqueles refrões ingénuos, tão velhos como Portugal, onde se fala de pastores, da noite do caramelo e que falam igualmente do perdão e da esperança.

No dia seguinte, a Covilhã dormia no esplendor da Santa Manhã, nem dos campos, nem da vila se elevava um rumor, somente a fonte do claustro continuava a cantar dando graças ao Salvador como que a lembrar aos frades que tinham de espalhar a boa-nova mesmo que o convento encerrasse.

 Em 30 de Maio de 1834, Joaquim António de Aguiar decretou a extinção das ordens religiosas. No mês seguinte foi nomeado presidente in capite Frei Francisco da Conceição Santa Ana a quem caberia inventariar os bens do convento. A 25 de Junho José Pereira de Carvalho ordenou que se vendessem os frutos e o vinagre do convento e a 13 de outubro é redigido o auto para principiarem as arrematações dos bens móveis.

Os frades continuaram a sua actividade pastoral em diversas paróquias e dinamizaram as congregações da Ordem Terceira.

No inventário que foi feito do convento, por Frei Francisco, para arrematação dos bens móveis ainda se pode ler: “um sino que era da torre da igreja e está na cela do guardião”.

 

Carlos Madaleno, Historiador

- 21 dez, 2021