Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Democracia: Uma mão cheia de nada que é tudo - Parte II Voltar

Ressurreição da democracia após a mortificação de 260 a. C

 

Valerá a pena salvar esta democracia?

 

«Se a civilização grega nunca tivesse existido… nunca nos teríamos tornado plenamente conscientes, o que significa que, para o melhor e para o pior, nunca nos teríamos tornado humanos.»

W.H. Auden, the greek and us, in «Forewords and Afterwords, 1973

 

A reanimação da democracia, não foi tarefa fácil e veio a acontecer contra todas as expectativas, contudo, no alvor do século XIX, já havia sinais de que a vítima, do ano 260 a. C, ainda respirava. Que Atenas tenha voltado à vida, deveu-se a um empreendimento em grande escala assente numa labuta política e intelectual, sobretudo graças às obras de alguns historiadores europeus.

                Atente-se às personagens como Jean Victor Duruy (Paris, 1811-94), que ajudou Napoleão III na preparação da biografia de Júlio César e, depois, viria a ser ministro da Educação da França, publicou uma edição ilustrada sobre a história da Grécia antiga, Histoire des Grecs. Formation du peuple grec,em três volumes.

Ernst Curtius (1814-96), historiador alemão originário de Lübeck, que chefiara um campo arqueológico na Grécia, descobrindo a mítica cidade de Tróia, e que, mais tarde, veio ser o tutor da corte do príncipe Frederico Guilherme (futuro imperador Frederico III), já antes tinha publicado uma história da Grécia, Griechische Geschichte,Salzwasser-Verlag GmbH, em cinco volumes.

Para além do contributo dos autores citados, outro relato, muitíssimo importante, veio a ser escrito por um inglês, de classe média, quanto à Grécia antiga.

                George Grote (1794-1871), um banqueiro, pensador utilitarista, membro do conselho de administração de uma universidade, parlamentar, e um chefe de família de classe média que de si próprio dizia ser um democrata. Esta sua História da Grécia/ History of Greece (Cambridge Library  Collection - Classics) teve ampla repercussão e os seus doze volumes foram publicados entre 1846 e 1856, assim como uma outra obra, Plato and the Other Companions of Sokrates, Kindle Edition. Em que tomou apaixonadamente a defesa da democracia ateniense contra a grande vaga de esquecimento e crítica que por pouco não a enterrava viva. Grote era filho de uma puritana e de um comerciante de Bremen, um homem que não era de brincadeiras e para quem o que contava eram os factos. No entanto, é curioso notar que ele nunca chegou a visitar Atenas. O seu pai proibira-o de estudar na universidade, preferindo treiná-lo para que entrasse no negócio da banca. E Grote não teve outra escolha que não fosse aproveitar o seu tempo livre e encarnar o modelo de um homem de letras autodidacta de classe média. Nada de ser um janota do século XIX. Grote era um árduo trabalhador possuído por um desejo de se melhorar a si próprio. Tendo um enorme apetite pela leitura, a dada altura, na década de 20 do século XIX, ajudou a reunir um círculo de discussão. Encontravam-se duas vezes por semana, antes do horário de expediente, mesmo no coração da zona financeira de Londres; era numa sala dos fundos na Rua Threadneedle. Eram figuras como Grote que mais convenciam os críticos do século XIX, como Karl Marx, de que a democracia mais não era do que um estratagema burguês. Contudo, não era assim que Grote encarava as coisas. Ele via-se a si mesmo como um advogado onde representava a defesa dos Gregos e especialmente, dos Atenienses, contra a injustiça que vinham sofrendo ao longo de dois milénios. A verdade é que conseguiu defender o que ninguém antes dele o havia feito.

A experiência da democracia ateniense era um exemplo precioso e a perspetiva de Grote assentava no pressuposto — partilhado pelos amigos Jeremy Bentham e James Mill, pai, e John Stuart Mill, filho, de que a oligarquia se tinha portado sempre mal e que os homens são egoístas, mas há remédio para esse egoísmo: dar liberdade e educação a todos, de modo a garantir o máximo de felicidade ao maior número possível de homens.

Ora este direito à liberdade, conceito que na Grécia clássica, significava não à escravidão, na Roma republicana designa a não dependência de outro privado e que só será incorporada pelo agir politico e receber do Estado o apoio necessário muito mais tarde, pressupõe já a ideia de que a democracia é um regime progressista para o indivíduo e nada constrangedor na sua natureza, o que nos permite inferir que ela é a possibilidade de fazer emergir o liberalismo como corrente do pensamento, não obstante de já se encontrarem sementes no cristianismo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, em que cada indivíduo possa agir como um agente de ação.

 A sua magnanimidade humanista e liberal rompe com os regimes absolutos, monarquias, oligarquias, ditatoriais ou de iluminados pelo divino com estratificações sociais castradoras, que impedem o indivíduo de ação de tomar decisões económicas, sociais ou políticas de acordo com a sua vontade ou consciência.

Assim, os amigos de Grote eram liberais e progressistas, mal vistos pelos conservadores e pelo poder instituído. A título de exemplo, é fascinante ver como Bentham defendia os direitos dos animais, ou J. S. Mill a igualdade de género, algo revolucionário à época. Já para não falarmos de outros pensadores como Adam Smith, John Locke, Voltaire ou Montesquieu, que objetavam contra a concentração de poderes e à sujeição.

A autonomia do indivíduo é uma exigência da demokratia os seus ganhos são a promoção e o estímulo para um crescimento enquanto ser produtor de um Ethos libertador e humanizador: “ama o próximo como a ti mesmo”

Podemos dizer que o liberalismo triunfou, fez com que o ocidente progredisse socialmente, deixou herdeiros e após as duas guerras mundiais, século XX, contrapõe-se aos regimes comunistas, assume um horizonte social-democrata, permite o alargamento das liberdades individuais, o Estado surge como instituição democrática e definidor da Justiça, garante de uma igualdade de oportunidades, seguro social, educação gratuita e obrigatória, serviços nacionais de saúde, planos de reforma obrigatórios, leis do trabalho, subsídios de desemprego e de doença.

A demokratia é catalisadora de um Estado assente nas liberdades individuais e de uma boa distribuição da liberdade para todos os que não sejam seus inimigos.

Ora, é neste contexto intelectual (Liberalismo, Iluminismo, Utilitarismo, Humanismo) e tecnológico (Revolução industrial e capitalismo), que quebrando com o curso regular da ação humana, desbaratando com o feudalismo, a monarquia absoluta e o excesso de poder das Igrejas, que Grote elaborava assim o seu fio de raciocínio, para voltar a recordar aos seus leitores os atenienses para concluir que o regime democrático responsável seria superior.

Agora, havia que trazê-los de novo à vida; neste século XIX, havia que apoiar as lutas europeias a favor da democracia e contra a oligarquia e o modo de o fazer era regressar ao local de nascimento da própria democracia. Este trabalho de Grote foi monumental. Ele veio mudar tudo. Não obstante alguns altos e baixos, graças aos seus arrojados esforços a convicção de que a democracia ateniense é uma aliada de que os tempos modernos não podem prescindir voltou à vida e, desde então, continuou vivíssima. Parece que vemos a mão de Grote por todo o lado. Atenas é a primeira casa da civilização ocidental, é isso afinal que se diz em todo o lado, é sempre àquela grande cidade que vamos dar, quando tentamos encontrar, não só as origens do que agora chamamos de mundo moderno, mas também a fonte dos princípios que nos dizem hoje o que é ser homem. Atenas deu-nos as filosofias de Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles e figuras como Homero, Leónidas, Alexandre o grande, Esquilo, Sófocles, Aristófanes, Xenofonte, Tucídides, Demóstenes, Hipócrates, Euclides, Arquimedes, deu-nos a história, o teatro, a escultura clássica e tantas outras artes, mas ainda a política numa sua forma muito especial, o regime democrático.

Os ataques que hoje são feitos por muitos que se dizem democratas, arrogando-se com ideologias que negam a possibilidade do indivíduo ser livre enquanto possibilidade de ser produtor de Ethos libertador e humanizador: “ama o próximo como a ti mesmo” para além de ser completamente desadequado à natureza da Demokratia é também revelador do medo e da insegurança, entre outras coisas, de quem profere esses ataques. É como ouvir neoliberais, antiliberais, democratas antiliberais, liberais antidemocratas e cidadãos abertos a experiências autoritárias a vociferarem discursos com a palavra liberdade e tristemente sentirmos que não entendem o que é a Demokratia e a sua liberdade.

No fundo, para além de serem seus inimigos não passam de entidades ameaçadoras à justa liberdade individual e a um bom exercício das liberdades.

Embora seja compreensível, o facto é que a democracia ateniense se tornou presa fácil de jograis e malabaristas da cidadania que a não deixam evoluir, sem medo, para uma ontocracia, isto é, um regime ontocrático assente na natureza do ser de facto e não na ilusão do parecer ser.

A democracia é um credo universal e a liberdade de escolha e de ser só pode florescer ao seu lado.

Será a democracia a vaga do futuro?

Carlos M. B. Geraldes, (Ph. Dr.)

 

- 06 abr, 2021
- Carlos M. B. Geraldes