Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

“Sempre pensei que podia fazer a diferença na minha região” (c/vídeo) Voltar

 

É jornalista há 36 anos. Como começou este percurso profissional até chegar à Rádio Cova da Beira?

Foi um percurso que considero interessante. Comecei sem nenhuma expectativa. Luís Farias, coordenador da RTP de Castelo Branco, era meu vizinho, e convivemos por muito tempo. A minha primeira experiência com o jornalismo foi com ele, na Rádio Clube da Covilhã (RCC), em 1985. Precisavam de uma voz para ler um pequeno texto para um programa intitulado «Dimensão Ciência». Posteriormente, fizemos uma visita ao jornal «Diário Popular» e foi aí que se deu o clique, com a grande fonte de inspiração a ser um renomeado escritor e jornalista, Baptista-Bastos. Nunca mais deixei de ir à Rádio, até porque me convidaram para fazer o programa da manhã, que realizei durante três anos, e simultaneamente, concluí o ensino secundário. Depois fui para Bruxelas, onde fiz um curso internacional de jornalismo, com pessoas como o José Figueiras, a Fernanda de Oliveira Ribeiro, uma série de figuras que ao longo dos anos têm entrado via ecrã pela casa das pessoas. Depois nunca mais parei e dei continuidade à formação com os cursos do CENJOR.

 

Além das formações, a própria RCC era vista como uma escola de jornalismo.

Não aceito que as pessoas digam que a RCC foi uma escola. Fomos autodidatas, é como se fosse o início do mundo e iniciamos uma escola própria. Comecei a descobrir que tinha jeito para fazer atividades relacionadas com o jornalismo, numa época em que a rádio ainda era «pirata». Era uma clandestinidade que toda a gente conhecia, tanto que começou a lutar-se muito cedo pela Lei da Rádio e ela chegou em 1989. Depois saí da RCC e não vale a pena explicar as razões - apenas dizer que aqui como em qualquer outra parte do mundo «os santos da casa não fazem milagres» - e fui para a Rádio Caria, como coordenadora. Estive lá apenas seis meses e saí por um certo desconforto por as pessoas não entenderem muito bem o que era fazer rádio. Sempre levei as coisas muito a sério. A determinada altura do meu percurso tinha estudado na Antena 1 e na Rádio Comercial. Tive a hipótese de ficar em Lisboa, mas a cidade não tinha nada de meu. Os 60 contos que me davam naquela altura, quando o ordenado mínimo era de 27,5 contos, era como se estivesse aqui a ganhar 27,5 contos. Sempre pensei que podia fazer a diferença na minha região. Hoje podia estar na televisão, por uma via ou por outra. Também fui ao longo de nove anos correspondente do Correio da Manhã e acabei por sair por não me sentir confortável com o projeto. Acabei por escolher a Rádio Cova da Beira, quando saí da Rádio Caria, estou nesta Rádio há 31 anos, e tenho feito de tudo um pouco.

 

Tem 36 anos de carreira e como refere está na RCB há 31. Quais foram as notícias que transmitiu e que considera que tiveram mais impacto positivo e negativo?

Sou uma pessoa muito sensível. Tenho um especial amor pelos idosos e quero destacar o programa inovador, intitulado «Idade Maior», que surgiu na RCB e do qual fiz parte, dedicado exclusivamente aos idosos. Conseguimos, por exemplo, tirar uma idosa da rua, que vivia e dormia nas antigas escadas do Teatro Municipal da Covilhã, com os seus 16 gatos. Estas coisas não se pagam em dinheiro. Mantenho-me aqui e gosto do projeto, porque tenho ouvintes maravilhosos, a razão principal da nossa existência. Uma das notícias que mais me transtornou, até porque morreram três pessoas, foi a queda de um helicóptero, no dia 2 de agosto de 1996. Foi um dia muito difícil. Fiquei sozinha na emissão e não apenas para a RCB, mas para todo o país. Estamos a falar de uma época em que não havia as comunicações que há hoje. Lisboa estava a oito ou nove horas de distância, não havia internet, nem telemóveis, éramos nós e os nossos parcos recursos. Debitei o acontecimento para a Antena 1 e para as televisões. Foi um dos dias mais longos e difíceis, que começou às 7h00 e terminou às 04 horas, e depois as pessoas que morreram eram minhas amigas. No mesmo ano, no dia 6 de setembro, temos a bomba numa escola do Fundão, em que rebentou um explosivo, tendo morrido uma pessoa e outra ficou gravemente ferida. No espaço de um mês essas duas notícias são devastadoras para uma região como a nossa. Depois há uma gratificante notícia, em que todo o foco noticioso do país dependeu da Rádio Cova da Beira, que foi a notícia do falso médico, Hélder Potássio Bernardino, que exercia medicina no Hospital do Fundão há 15 anos, sem nunca ter tirado o curso, mas que teve defensores pelo bom trabalho que realizava. Posteriormente, numa entrevista que lhe realizei, ele contou tudo, incluindo as intervenções cirúrgicas que fazia.

 

A linguagem radiofónica pelas suas caraterísticas do direto e da rapidez leva, por vezes, a determinadas «gafes». Recorda-se de algumas?

De muitas. Dizer vamos a mais um «penico» musical em vez de pedido. Avançar que o primeiro bebé, em determinado ano, nasceu no dia 1 de janeiro, com 3.930 quilos, no Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira. Perguntarem-me na rua o que tinha nascido no hospital, se um bebé ou um elefante? Também estar a dar a temperatura e, ao mesmo tempo as condições climatéricas, e misturar a altitude com graus e dizer vamos ter uma temperatura de 800º centígrados. E a pessoa diz, mas isto é um caldeirão, estamos no inferno. Na emissão, não nos damos conta destas «gafes» e acabam por ser os próprios ouvintes a dizer-nos. A nível de episódios, sinto muito orgulho da Rádio, que todos ajudamos a transformar e tenho a ideia de que ainda hei-de mudar o mundo, mas com a pandemia e com o comportamento que observo das pessoas começo a perder as esperanças. Somos uma Rádio, que talvez poucos saibam desse pormenor, mas temos Estatuto de Utilidade Pública. Era suposto haver algumas regalias, mas as rádios locais não têm direito a subsídios, não têm apoios e sobrevivem à conta da publicidade, nomeadamente dos comerciantes.

É uma realidade que nos deve preocupar, até tendo em conta que a pandemia agravou as dificuldades de muitas das empresas que fazem publicidade nos órgãos de comunicação social locais?

Há vários anos que as empresas estão agonizadas. Por exemplo, a cidade do Fundão sempre foi muito comercial e vinham pessoas de diversos locais do país aqui fazer as suas compras e, entretanto, o comércio foi morrendo porque apareceram as grandes superfícies comerciais. As crises têm sido cíclicas. Essas grandes superfícies comerciais vêm buscar dividendos em todos os sentidos, mas não os partilham, não têm responsabilidade social. Esquecem-se que somos nós que damos as notícias e que ajudamos a promover a região.

 

Sabemos que tem algumas histórias «inusitadas» na sua atividade profissional. Quais foram as mais impactantes?

Nas instalações antigas da rádio entraram dois indivíduos, cada um mais ameaçador que o outro em aspeto. Os senhores queriam apenas casas abandonadas, mas eram todos uns «incompetentes» que não lhe davam as casas abandonadas. Queriam fazer um anúncio na Rádio para que fosse possível terem essas casas. Fui atendê-los à porta, mas disse-lhes que tinham de pedir na autarquia e que os nossos anúncios não iriam resolver nada. Eles insistiram, insistiram, até que um deles tira uma arma e diz que «os mata a todos» e, com uma calma vinda não sei de onde, tirei-lhe a arma da mão. Outra vez encontrava-me a entrevistar uma pessoa que estava a ser perseguida por alguém que a queria matar, alegadamente. Fomos para um sítio público, um restaurante, para realizarmos a entrevista com mais segurança e, de repente, entra um senhor com um olhar que parecia de vidro e diz-me: «primeiro vou-te matar a ti», e depois disse à minha entrevistada, «e tu já sabes vais morrer também». Entretanto, entraram dois indivíduos da Polícia Judiciária que o detiveram.

 

Falamos já nos seus ouvintes e com quem tem, posso afirmar, uma «relação privilegiada». Quando faz um apelo, relacionado com questões de solidariedade, eles respondem positivamente. A que se deve sempre essa resposta tão positiva?

A RCB vai fazer 35 anos. Temos o programa «Ele há casos» que é o mais antigo da rádio, onde as pessoas colocam diversos problemas, desde os mais básicos, como um buraco por tapar na estrada, ao lixo por despejar, até problemas graves, nomeadamente alguém que está doente e que precisa de ajuda para fazer o tratamento. A esse propósito já conseguimos dar cinco cadeiras de rodas. Neste aspeto, o último caso deste género contou com a ajuda do empresário fundanense, Paulo Nobre, da J3LP, e consistia num arranjo de uma cadeira de rodas elétrica, no valor de quatro mil euros. Demos também uma plataforma a uma família do Colmeal da Torre, no concelho de Belmonte, em que a criança tinha quatro anos e nunca tinha ficado em pé. Lembro-me também de uma senhora que queria ficar com os filhos, mas não tinha dinheiro e foi-lhe exigido que tivesse uma casa com determinados requisitos. Houve um ouvinte que estava em França e que se disponibilizou para mobilar toda a casa. Já cheguei a fazer apelos para tentar solucionar pequenos problemas às 10 horas e a conseguir a sua resolução às 10h30. Acho que não há rádio nenhuma no país que tenha esta filosofia que tem a RCB. Tenho visto muitas rádios que estão próximas dos ouvintes, mas há algo especial nesta Rádio.

 

Como vê o futuro do jornalismo regional?

O futuro desta profissão encaro-o com alguma pena e com alguma tristeza. Vemos grupos nas redes sociais que divulgam aquilo a que se pode chamar a escravidão do século XXI, na área do jornalismo. Depois não há colaboração entre os próprios colegas. Defendo, por exemplo, que se crie uma rádio que abranja todo o distrito de Castelo Branco, mas não é de todo viável, porque até nos debates para as eleições autárquicas há complicações. Um quer liderar, o outro quer liderar, e quando vemos que as pessoas têm o poder colado à pele não há hipótese. Se não houvesse tantas rádios, tantos projetos, que por vezes não têm conteúdo, talvez fosse benéfico para a qualidade da atividade jornalística e para os jornalistas. Para já é um cenário inviável e não sei se algum dia poderá vir a ser exequível. O jornalista em geral ganha muito pouco, sobretudo no interior do país. É triste as pessoas chegarem a um patamar em que há uns anos ganhavam mais do que agora, fazendo os mesmo sacrifícios e as mesmas coisas ou até mais. Quando o meu filho dizia que queria ser jornalista, talvez por influência do pai e da mãe serem jornalistas, pedia-lhe, por favor, que escolhesse outra profissão. Felizmente, escolheu outra profissão. Não é porque o jornalismo seja uma má atividade, é aliás, uma das coisas mais bonitas e fantásticas que existe, se for feito com coração. Mas é penoso. Quem quiser seguir jornalismo que tenha muita abnegação e que goste mesmo desta profissão.

 

Há alguma mágoa que tenha ficado neste percurso de 36 anos?

Não, nenhuma mágoa. Não alimento mágoas, nem rancores, porque dá muito trabalho. Não tenho mágoa de ninguém.

- 02 abr, 2021
- Ricardo Tavares