O momento das nossas vidas
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Quando há cerca de um mês, escrevia esta crónica, o Presidente da República anunciava o cancelamento da sua agenda oficial durante duas semanas, sujeitando-se voluntariamente a uma forma voluntária de quarentena com monitorização médica. Um cisne negro abria as suas asas e lançava sombras inquietantes no nosso quotidiano.
Desde então, o Presidente da República anunciou e, depois, renovou o Estado de emergência. As instituições de ensino, os serviços e o comércio encerraram. A Lombardia, primeiro, depois, os lares de Madrid, ao que parece, a nossa Ovar tornaram-se a imagem do pesadelo coletivo.
Num ápice, fomos confirmados de repente às nossas casas, na incerteza de saber, ainda hoje, o que será o futuro. A peste que despertou a imaginação literária de autores como Daniel Defoe, Bocaccio, Dostoievski e Camus, tornou-se uma banalidade quotidiana alimentada pelo relatório diário do número de infetados e de mortos.
Á hora a que escrevo, há jornais que preveem que economia portuguesa se afunde até chegar às dimensões dos anos e 90.. Segundo o Expresso, “uma contração superior a 10% a 11% já aproximará o PIB dos difíceis tempos da troika. E menos 15% a 16% no PIB será suficiente para afundar o país até ao século XX.”
Porém, estes números são apenas grandezas macroeconómicas um que escondem outras: o número de desempregados, a quantidade imensa de pequenas e médias empresas que não vão reabrir, o abandono escolar, o previsível colapso de algumas instituições, a desestruturação familiar e das comunidades , o adiamento das outras urgências e o consequente funcionamento anormal durante anos de serviços de saúde subdimensionados, o reajustamento incerto das prioridades sociais, a erosão das noções de proximidade social, a reinvenção do emprego inevitável mas agora acelerada pela intromissão do vírus e as marcas psicológicas de uma mais do que provável gigantesco traumatismo coletivo.
Recordo-me que a minha família se consolidou com os filhos que, entretanto, já criei num ano de otimismo e de crescimento económico. Portugal conhecera o seu momento de desenvolvimento no ciclo do impacto dos fundos comunitários com o fim que parecia definitivo de anos de atraso e de pobreza, os quais pareciam parte de uma longínqua memória de emigração e de guerra colonial, analfabetismo e subdesenvolvimento. Acreditava-se como parte de Ocidente global. Este, por sua vez, olhava-se ao espelho imune contra a incerteza e cavalgando as maravilhas do progresso tecnológico, da União entre os povos europeus e de uma sociedade de prosperidade.
O século XXI não tinha começado bem. O ano de 2008 e, se bem se recordam, os sinais que o precederam, já tinham demonstrado que o mundo estava a mudar: a Europa estava longe de ser a mesma. A globalização tornava-nos cidadãos de um mundo em que, pela primeira vez, na melhor das hipóteses, a Europa ocupava o meio da primeira divisão. Neste momento, materializa-se o receio há muito instalado que chegamos ao fim de uma era. O Ocidente, a certeza da qualidade de vida, do progresso e do crescimento económico que geraram vagas sucessivas de utopias políticas e de revoluções científicas e tecnológicas, aparece como um lugar de futuro incerto.
Como recorda Francis Fukuyama na Revista de Atlantic de 25 de Março, três meses atrás, ninguém sabia que o SARS-CoV-2 existia. Agora, o vírus espalhou-se para quase todos os países, infecto pelo menos 446.000 pessoas que conhecemos e muitas outras que não conhecemos. Fez colapsar economias e quebrou os sistemas de saúde, encheu hospitais e esvaziou os espaços públicos. Separou as pessoas dos seus locais de trabalho e de seus amigos. Isso perturbou a sociedade moderna em uma escala que a maioria das pessoas vivas nunca testemunhou. Em breve, quase todo mundo nos Estados Unidos conhecerá alguém que foi infetado. Como a Segunda Guerra Mundial ou os ataques do 11 de setembro, essa pandemia já está imp+ressa na psique coletiva .
Finalmente, tudo isto acontece num contexto em que ninguém conhece a dimensão do problema: a Covid 19 é uma doença lenta e que demora dias a manifestar-se e a ser testada. A violência do último mês foi precedido de um tempo de maturação e, já agora, por um longo tempo de distração, num momento em que revisão de literatura científica e de conferências múltiplas (Bill Gates, por exemplo) têm demonstrado que as potencialidades de uma pandemia e do subdimensionamento dos sistemas de saúde eram uma hipótese provável, avisada por muitos.
Nesta circunstância, as dúvidas acumulam-se para além do simples regresso à normalidade, território hoje distante: Qual será o futuro do teletrabalho, do emprego e da vida profissional como a conhecemos? Qual serão as representações sociais dos idosos? Qual será o futuro ensino? Assistiremos a vagas de populismo antidemocrático, apoiadas pelo medo e pela incerteza? Como se vão redimensionar os países e qual será o conceito de qualidade de vida? Quais serão as hierarquias sociais? Co se procederá o reordenamento geográfico? Qual será o lugar e a esperança das regiões do interior num momento em que o escalonamento de prioridades vai ser essencial perante a inevitável diminuição da despesa do Estado? Qual vai o papel do ensino, das autarquias e dos cidadãos organizados na definição desse futuro? Eis algo que para o qual devíamos estar motivados: para além do teletrabalho, gostaria que houvesse a teletertúlia, a teleconversa, o teledebate. E não é possível?
Perante este diagnóstico a União Europeia é uma carocha embriagada que carece de justificar a sua razão de ser. Perdida entre remédios sem solução, “liderada” por políticos dependentes de uma opinião que pouco tem de publica, a União europeia quer emprestar dinheiro, revelando toda a sua estrutura assimétrica e a impossibilidade quase definitiva de se constituir como um projecto económico e político de sucesso. Escrevo na véspera de uma cimeira que pode ser decisiva ou que pode nos remeter de novo para um resgate mitigado. Alguém vai ganhar dinheiro com isso. E isso, sim, é repugnante!
Apesar de tudo, acredito que há motivos para e potencialidades para os melhores de nós apostem num mundo melhor em que os mais velhos de nós terão mais dificuldade de se reconhecer. Essa é a parte do artigo que espero escrever na próxima ocasião. Oxalá, a esperança não seja uma sala de contágio e o lugar de uma ilusão envenenada. É algo que não saberemos senão estudando e trabalhando e não desistindo.
João Carlos Correia
- 08 abr, 2020
- João Carlos Correia