Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

"Fico em casa" com Cristiano Gaspar Voltar

Temos de ficar em casa, pois temos, mas é um suicídio lento. Sou naturalmente um pessimista realista. Um homem médio português, um tuga de tasca com uns livros lidos se o leitor assim o quiser ver, e acho que o sou muito bem.


A pandemia será, como tem sido, uma desgraça para a Europa e particularmente para Portugal. Não creio que as coisas venham a ficar bem, porque implicaria admitir que toda esta situação venha a ter um impacto positivo no nosso país - bem nunca estivemos, porque haveríamos de bem ficar agora? Daí que naturalmente escreva mal-disposto. Também se exige por vezes.


Nestas alturas de aperto, são sempre chamados os grandes escritores, poetas e pensadores (oh, os pensadores!), que presenteiam o público com as suas reflexões de circunstância, mastigando os vocábulos mais bonitos e desconhecidos, como frustrados Eça da nossa época, para lançar mensagens de ânimo e esperança à população. Ninguém percebe o que dizem, ou para quem falam, mas que soa bem, ai isso soa - dizem ser precisa força, resiliência, coragem e ânimo, enquanto bebericam a sua chávena de chá ou café, do alto do privilégio que possuem, por poder manter a sua rotina normal de trabalho - em casa, junto dos seus, agarrados ao seu computador. "Vamos todos ficar bem", concluem sempre.


Pois não é verdade. Só poucos de nós vamos ficar bem - a maioria ficará, como já está a ficar, na miséria. Gente real como o António, para quem não vai ficar tudo bem, que investiu as poupanças da família num negócio de alojamento local, tendo acabado agora mesmo de abrir portas com um empréstimo bancário, que nem com as moratórias vai conseguir pagar, porque entretanto o setor do turismo morreu para o próximo ano inteiro. Não vai ficar tudo bem para a Maria, pois que há 1 mês que está impedida de laborar e tem despesas familiares pagas a contar com um ordenado a 100%, que já é curto, e não a 66%, como acaba a receber com o regime do lay-off, se não tiver sido já despedida, porque a ela não lhe assiste a sorte da mudança para o teletrabalho, que é coisa exclusiva de gente com trabalho fino. Não vai ficar tudo bem para o Zé, dono do café, tasca ou restaurante, que vê a sua única fonte de rendimento de portas fechadas e  está já a fazer contas à vida, com fornecedores à porta a querer receber e família em casa a querer comer.


São estes rostos invisíveis, estas gentes portuguesas, que são o verdadeiro motor do país, mais que os escritores, poetas e pensadores. São elas que sustentam a nossa economia e são elas que estão paradas e agora a penar a cada dia que passa. Que palavras temos para elas? Que lhes pedimos? Ânimo, força, coragem? Que atrevimento! Isso já o têm todos os dias da sua vida, porque se levantam para trabalhar sabendo que continuará a ser apertado no fim do mês. Não. Aquilo que temos de lhes pedir é desculpa, porque os abandonámos durante todo este tempo e agora temos o desplante de lhes pedir que fiquem em casa, que se sacrifiquem pelo país e pela comunidade, para a saúde e o bem comum de todos. E sabe o leitor que mais? Eles fazem-no, de forma silenciosa, sem reclamar, como gente humilde e responsável que são, e sem esperar nada em troca, porque nunca o receberam - tudo para até nas palavras serem esquecidos! Para eles não vai ficar tudo bem, pois que voltar ao normal é voltar ao que está e sempre esteve mal.

- 07 abr, 2020
- Cristiano Gaspar