Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Espaço Literário: Cultura é nutriente em tempos de quarentena por Ivo Rocha da Silva Voltar

Algum de vós conheceu o João-à-Espera?

Fulano aprumadinho, de poucas falas, vivia sentado sob as arcadas do edifício camarário covilhanense, no pelourinho de outrora, senhor do seu trono, qual césar utopista, observando atentamente os congéneres, sorrindo-lhes com a expressão benevolente a que os habituou durante décadas.

 

No passado, partilhei convosco uma mão-cheia de estórias da personagem, mas nunca aquela que hoje vos escrevo. É que, neste cenário complexo, encerrados em ca(u)sa própria, resistindo a uma pandemia que se arrasta, não podemos esquecer aquilo que sempre nos uniu: a cultura. O cordel invisível que nos conecta, que nos diz quem somos, que nos define enquanto sociedade. É este o fio condutor da estória que vos trago.

 

Ora, quando era mais novo, o nosso João-à-Espera já adivinhava o futuro: seguir a nobre profissão de seu pai, que era operário. Assustavam-no as dificuldades financeiras que enfrentaria, reprodução da infância, mas o que lhe moía a alma era o afastamento definitivo da escola. João-à-Espera desejava aprender, conhecer o mundo, dominar outras línguas e descobrir novas culturas. Um destino que não era seu.

 

Consolava-se, o triste, nos livros que a mãe lhe trazia todos os domingos, empréstimo do patrão, que sabia o rapaz faminto por letras. Crescia o nosso João envolvido nos labirintos dos grandes autores da história, que repousavam na biblioteca atulhada do velho industrial que empregava a sua mãe.

 

Ah, eram os melhores momentos do seu dia, aqueles em que se deitava na cama e navegava num mar de letras. Descobriu o poema épico, embalado nos cantares de Cid e Rolando, imaginando os alegres jograis nas cortes. Vibrou com a gloriosa epopeia lusa traçada nos cantos de Camões. Assombram-no a genialidade de Dante e a galopada de Cervantes, mas foi na ironia de Voltaire que se perdeu.

 

Leu centenas de livros até ao dia fatídico. O coração enfraquecido do velho industrial não resistiu e a mãe foi dispensada. Acabou o corrupio de livros entre a sua casa e as estantes empoeiradas da mansão. João-à-Espera chorou o desaparecimento do homem que lhe permitira descobrir o mundo em caravelas literárias. O vazio preencheu-lhe os dias e escureceu-lhe a alma. Regressou o pobre à sensaboria do seu fado.

 

A estória do nosso João-à-Espera evidencia a importância da cultura na construção de uma sociedade plena. No seu caso, a arte, particularmente a literatura, foi o primeiro rasgo, mas viria a descobrir, mais tarde, que os seus cinco sentidos eram coletores culturais de excelência.

 

Durante a quarentena, o alimento cultural deve nutrir a mente e o espírito. Seguimos os passos de João-à-Espera. Viajamos em direção ao novo. Partilhamos histórias e experiências. Somos agentes do cordel invisível que sempre nos uniu: a cultura.

- 08 abr, 2020
- Ivo Rocha da Silva