Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

A Páscoa dos nossos país e avós Voltar

Após o Domingo de Ramos começava a azáfama. As mulheres de joelhos, esfregando os soalhos, os homens a caiar as paredes e a esfronhar os tetos, até que tudo se tornasse num brinquinho para receber a Aleluia. A Semana Santa tinha sido repartida entre limpezas e as obrigações do bom Cristão. Ninguém ficava isento de participar no Ofício de Trevas, na quarta-feira santa, da procissão das Endoenças, na quinta e da Adoração da Cruz e procissão do Enterro do Senhor, na sexta. Durante toda a semana, pela alta noite, o dolente e arrastado canto do encomendar das almas quebrava os aconchegados serões à lareira. No sábado aparecia a Aleluia, era, por isso, noite em que não se dormia.

A vigília Pascal iniciava-se tarde e ainda com o pesar da Quaresma. Na igreja, retábulos e janelas mantinham-se tapados com panos negros. Tinha então lugar a bênção do lume novo e da água. Os fiéis ansiavam pelo “Glória in Excelsis Deo” e quando finalmente era proferido, tudo se transformava. Como que num relâmpago vertiginoso, os panos das janelas e dos retábulos eram retirados, havia uma explosão de som provocada por campainhas, cornetas e assobios. As duas bandas filarmónicas tocavam ao mesmo tempo que os sinos repicavam festivamente. Na Capela-mor, então totalmente descoberta, era visível a cruz que na sexta-feira presidira à cerimónia da Adoração, mas agora em lugar da centenária imagem de Cristo, ostentava apenas um pano branco, símbolo da ressurreição.

Saídos da igreja de madrugada, organizavam-se os grupos que haviam de cantar as alvíssaras de casa em casa, de rua em rua, até que a notícia chegasse a toda a parte. O canto, cuja letra poucos recordam, era alegre e invocava os santos venerados nas várias capelas da freguesia. Já o sol ia alto quando os grupos se desfaziam para que ao meio-dia pudessem participar na missa. Seguia-se à eucaristia dominical a procissão da Ressurreição, promovida pela Confraria do Santíssimo Sacramento.

Vinha depois o almoço para recompor os ânimos. Chegavam os tios, os primos, os avós e claro os padrinhos, acompanhados pelo respetivo folar. Comia-se o galo assado no forno ou o borrego refogado na panela de ferro que exalava perfume a pimento e loureiro. No final, os bolos da festa, servidos num tabuleiro. Cheiravam ainda a quente acabados de cozer no velho forno de pedra.

Após o almoço, todas as famílias ansiavam pela visita do senhor padre que vinha tirar o folar e dar a cruz a beijar. Revestido de sobrepeliz, o Senhor Padre Manuel Andrade fazia-se acompanhar dos acólitos, o Zezito trazia a campainha, enquanto o Tonico transportava a caldeirinha. Seguiam ainda no grupo, o homem da cruz que envergava uma opa vermelha do Santíssimo e o Ti Zé Emídio levava o cesto para as galinhas oferecidas ao senhor prior. Atrás vinha um grupo de rapazes esperando que lhes atirassem alguns tostões.

Em cada casa esperava-os, em cima de uma mesa com a melhor toalha de renda, um pratinho com algumas moedas, bolos da festa, as amêndoas e copos de vinho fino. O Sr. Padre pegava no hissope e aspergia as cabeças sorridentes, a casa, o folar… - Boas Festas, Aleluia, Aleluia! A casa estava benzida, as almas lavadas na Desobriga, a cruz beijada, os garotos rebolavam no chão atrás do meio tostão atirado. No dia seguinte estavam ainda felizes por terem andado à arrabainha.

Ao final da tarde preparava-se o farnel para o dia seguinte. Segunda-feira de Páscoa sempre foi dia de festa nestas abençoadas terras da Beira. Uns rumavam a Penamacor à festa de Nossa Senhora do Incenso, outros a Caria para festejar o Santo Antão mas a maioria dirigia-se para Orjais a fim de venerar Nossa Senhora das Cabeças. Subia-se a serra por entre estevas, soutos e olivais entremeados por verdes courelas de centeio. Carregavam-se os ex-votos de cera, a perna, a mão, a cabeça…afinal eram muitas as graças. Depois era o mar-a-monte de gente. Eram as doceiras com as amêndoas, e os rebuçados de açúcar caramelizado. Eram os vendedores de rosários de pinhões, “cada três cinco tostões” e as Santinhas de açúcar que os gaiatos felizes levavam ao pescoço. Era a mística da procissão que tocava a estranha multidão.

No final restava a esperança num tempo melhor, mais justo, mais fraterno.

Não esqueçamos que ontem como hoje a Páscoa é e será sempre Esperança.

Carlos Madaleno

- 08 abr, 2020
- Carlos Madaleno