Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Carta Aberta ao Papel Higiénico Voltar

Querido Papel Higiénico:

Nunca te dei grande valor, sempre te considerei substituível e pior que isso sempre te mandei à merda e isto literalmente falando. Nem sequer dei grande atenção ao teu aspeto pois servi-me de ti sempre numa zona em que os meus olhos não alcançam e é como quando se comete aquela injustiça de mandar um amigo para trás das costas. Ouvi dizer que podes ter folha dupla, tripla, que podes ser branco, azul, cor-de-rosa e que até por vezes és perfumado e eu lamentavelmente passei a vida a enviar-te para zonas contrastantes. Tenho como desculpa o facto de Bach, Mozart ou Beethoven só passados séculos da sua morte terem sido valorizados, mas agora sofro eu por não te ter prezado quando devido e te ter dado continuamente o destino de sofreres no fundo da latrina, como um naufrago abandonado à sua sorte sem a ajuda da mãozinha que para lá te mandou. Só agora, e com muito atraso, vejo nos hipermercados quão é grande o teu clube de fans. Esfalfam-se, lutam, desalmam-se, correm, transpiram e só quando te têm dentro do carrinho surge um sorriso de alívio muito parecido com aquele que fazemos segundos antes de te chamarmos à tua missão. Quando entro nesses espaços comerciais, a correria dos humanos em tua direção, é igualzinha aos anos sessenta quando o povo encarava com a Marilyn Monroe, embora a leveza do seu vestido branco não se compare com a finura da tua textura e a graciosidade do teu esvoaçar é incomparável. Hoje és um ídolo de todos nós. Nem carne, nem peixe, nem massa nem arroz hoje conseguem ter o teu estatuto pois quando passamos o segurança dos hipermercados, que finge contar a malta, só tu estás no nosso pensamento e só tu nos fazes manter a forma física tal o modo como corremos na tua direção. Começaste a tua vida por baixo, geograficamente falando, e hoje estás no topo. Subiste na vida não a pulso, mas sim porque o pulso dos outros te deram ajuda, mas mesmo assim tens um mérito inacreditável. E depois és especial por seres agradecido à tua origem. Pensa-se que foste inventado no Séc. VI na China e agora por causa dos chinocas cá estás tu a marcar pontos. Gostava muito de te dizer isto tudo cara a cara enquanto trabalhas, mas obrigar-me-ia a uma posição extremamente difícil e não sou propriamente um contorcionista. Mas também desconfio que passaste a ser fonte de alimento, pois cruzei-me na caixa de pagamento com um tipo com 20 rolos de familiares teus e uma pequena dose de bacalhau. A tua importância neste momento é tal que não me admira que passe a constar nos menus gourmet o tradicional Papel Higiénico à Brás e por outro lado bacalhau em folha dupla e que espero que lhe tirem as espinhas. Hoje reconheço que sempre foste injustiçado talvez por trabalhares nas costas de cada um de nós e o nosso alívio terminar sempre com o teu afastamento o que é uma ingratidão tremenda. Percebo agora o dizer antigo que “por de trás de um grande homem há sempre um grande rolo de Papel Higiénico”. E até aqueles idiotas que não cumprem as regras desta nova realidade se pensarem “caguei nos outros” lá terão, no final, de recorrer a ti. És o maior…

- 31 mar, 2020
- Luís Cipriano