Diretor: Vitor Aleixo
Ano: XI
Nº: 587

Do Interior com Sucesso: Daniela Santiago, o rosto da RTP em Madrid Voltar

JORNALISMO: Reconhecida jornalista da RTP e correspondente do canal televisivo em Madrid, cresceu e viveu na Covilhã até aos seus 18 anos. O Fórum Covilhã falou com a jornalista sobre o seu percurso, o que ainda há a fazer e os desafios e paixões desta profissão

JFC – A Daniela não nasceu na Covilhã, mas foi aqui que desde muito nova cresceu. Quais são as principais memórias e recordações que guarda da nossa Cidade Neve?

DS – Eu nasci em Lisboa, mas fui para a Covilhã com 2 anos, onde fiquei até aos 18 anos, porque depois concorri para Comunicação Social e, como tinha média de 18 valores, fiquei em Lisboa, exatamente onde queria. Recordo-me muito bem dos tempos de escola, onde andei no Rodrigo, na Campos Melo e na Frei Heitor Pinto. Tenho excelentes recordações dessas escolas e também do Conservatório, onde seguia, na altura, o curso de piano. Foi aí que comecei a colaborar com a Rádio Cova da Beira, com 15 anos, e foi lá também que recebi o meu primeiro ordenado, na altura 20 contos e que até tirei fotocópia a esse cheque, sendo que foi com ele que abri a conta bancária que ainda hoje mantenho. Também me recordo dos meus amigos (muitos ainda mantenho), dos grandes nevões em que ficávamos dias sem ter aulas, da discoteca Numero Uno no Tortosendo, do English Bar no Fundão.... Tive uma infância e uma adolescência muito felizes, onde podia andar na rua e tinha muitas ocupações. Estive também presente no arranque do coro do maestro Luís Cipriano e dávamos, na altura, muitos concertos.

JFC – Depois de tantos anos depois de ter deixado a cidade e de ser agora também uma cidadã do mundo, continua a ter aquele lado beirão bem vivo em si?

DS –Toda a minha família é beirã. Do lado da minha mãe, do Fundão e, do lado do meu pai, da Soalheira. Portanto, a Covilhã acaba por ser uma escolha de vida dos meus pais. Sou 100% beirã de sangue e as recordações são fantásticas. Passei mais tempo em Lisboa já do que na Covilhã e até a viajar por todo o mundo, mas mantenho a minha casa na Covilhã, já que é o meu porto seguro, onde eu gosto muito de ir na Páscoa, alguns dias no verão e no Natal. Pelo facto de estar mais perto de Madrid, agora até opto por ir à Covilhã em vez de ir a minha casa a Lisboa para matar saudades da família e da cidade que eu adoro e de que tenho sempre muitas saudades.

JFC – É mais difícil para alguém que sai do Interior vingar e ter sucesso? Ou considera que atualmente a nossa naturalidade já é menos relevante no nosso percurso?

DS – Quando eu saí em 1992, era muito difícil para uma pessoa do Interior chegar a Lisboa. Não havia autoestrada, demoravam-se muitas horas de carro, não havia telemóveis nem internet… Eu, quando fui dividir casa com outras jovens que não conhecia, descia todos os dias às 20 horas da noite a casa da vizinha para falar com a minha mãe, porque era quando ela ligava. Portanto, é curioso olhar para trás e ver que nestas décadas tanta coisa mudou. Hoje é muito mais fácil um jovem ir estudar para o estrangeiro do que na altura sair do Interior para prosseguir os seus estudos em Lisboa. Mesmo para vir a casa quando dava, passavam-se os fins-de-semana em viagens de comboio no inter-regional. Portanto, sim, hoje em dia é mais fácil. As pessoas do Interior não estão limitadas, na Covilhã já há um mar de oportunidades, basta ver os muitos jovens que vão de todo o país estudar para a Covilhã por ter uma oferta muito rica tanto em termos universitários como profissionais e de vida académica, que é aquilo que os jovens também gostam e valorizam.

JFC – Entretanto vai para Lisboa estudar Comunicação Social e terminando tem a oportunidade de ingressar na RTP. Era o sonho de uma vida, poder fazer informação a nível nacional e logo no canal público?

DS – O meu sonho era ser jornalista, tive essa certeza aos 15 anos quando comecei a fazer rádio na RCB e a escrever para alguns jornais. Daí a escolha do curso de Comunicação Social em vez de qualquer outro. A televisão cativava-me, eu adorava fazer rádio e fui fazendo logo cursos profissionais, porque achava que a universidade não me iria dar a prática que eu precisava. Trabalhar numa rádio local ajudou-me muito e notou-se isso quando fui estagiar para a RTP, porque já levava alguma experiência anterior. Sempre sonhei estar num meio nacional e, na altura, a RTP era uma grande referência. Ainda o é, mas, na altura, as privadas tinham começado recentemente e a RTP é a RTP, um canal cheio de história e de que me orgulho muito de fazer parte e de integrar os quadros, numa ligação já de 23 anos.

JFC – Como jornalista, acabou por fazer muitos trabalhos tanto pelo país como no exterior, tendo visto histórias muito fortes e realidades muito diferentes. Até que ponto esse conhecimento de uma realidade maior a transformou enquanto profissional e também enquanto pessoa?

DS – A experiência como jornalista, em que tive oportunidade de estar onde a história acontece nos bons e nos maus momentos (estive no Kremlin com o Putin e já tive crianças ao colo em África que morreram no dia seguinte), mudou-me completamente. Houve momentos em que eu entendi logo na hora que a minha vida nunca mais seria a mesma depois de acontecerem. É só lembrar-me da tragédia do tsunami no Sri Lanka em 2004, em que fui por uma semana e acabei por ficar três semanas. Só na primeira semana perdi cerca de 4 quilos porque não havia comida, estavam a começar a queimar os corpos (só naquela zona cerca de 40.000) e o cheiro e a dor dos familiares à procura uns dos outros entre esses mesmos corpos são tudo coisas que me marcaram muito. Essa experiência nunca a esquecerei. Todos para mim têm o mesmo valor, nenhuma vida humana tem mais valor que outra, esteja coberta de ouro ou não e, por isso mesmo, sou muito sensível à questão dos migrantes e dos refugiados e tenho muita pena que a grande esmagadora maioria das pessoas não saiba o porquê de estas pessoas estarem a arriscar tudo para poderem ter uma vida. Eles estão a correr um risco de vida para ter uma vida, porque a realidade em que eles vivem é tão dramática que não se pode dizer que eles têm uma vida antes de virem. É difícil enumerar todos os sítios onde fui, mas todos eles me fazem ser mais intolerante com a vaidade, com a inveja, com a soberba, com a mania de superioridade que o ser humano tem apenas por ter nascido num país desenvolvido ou num berço de ouro, quando outro exatamente igual a si teve o azar de nascer sem essas condições. Dou cada vez mais valor a coisas muito simples e básicas na vida e menos valor a outras, nomeadamente à classe política (principalmente a internacional) que não está a saber resolver dois dos maiores problemas que tem de enfrentar: o câmbio climático e o drama dos refugiados.

 

 JFC – Entretanto surge a experiência como correspondente da RTP em Madrid, que ainda hoje se mantém. Para alguém que adora viajar e conhecer mundo como a Daniela Santiago, aliar isso ao jornalismo deve ser um desafio muito enriquecedor. Como avalia até ao momento este novo rumo da sua vida?

DS – Madrid é um desafio. Estava na minha zona de conforto em Lisboa, com a minha vida a todos os níveis completamente estabilizada, mas eu precisava de um novo desafio. Estava na editoria política nacional há demasiado tempo, mas a minha grande paixão no jornalismo é o contacto com as pessoas e, quando a RTP abriu concurso para Madrid, eu candidatei-me e acabei por ganhar e tem sido um desafio constante. Espanha é um país gigante e eu sou a única a trabalhar para a RTP aqui e parece que Espanha, desde que cá cheguei, decidiu dar notícias todos os dias. Acabou o bipartidarismo, a crise política dura praticamente há quatro anos, estalou a crise catalã como sabemos. Isto, somando ao Cristiano Ronaldo, à monarquia, à cultura, acaba por não haver um minuto de descanso e, de facto, é um desafio constante ser responsável por um país tão grande e importante a todos os níveis, até pela proximidade com Portugal. Julgo que tenho conseguido superá-lo até agora.

JFC – Como avalia o panorama atual do jornalismo nacional, numa época em que tanto se critica o excesso de disponibilidade de informação não filtrada e dada de forma parcial?

DS – Quanto ao estado do jornalismo, eu sou muito crítica, mas não é de agora. Tenho artigos publicados em livros académicos em que coloco em causa a credibilidade do jornalismo e, hoje em dia, sou cada vez mais pessimista, no sentido de a médio e longo prazo achar que o jornalismo vai ter de ganhar de novo um papel muito relevante na sociedade e de vencer esta luta contra a falta de credibilidade, porque é, de facto, o quarto poder e tem de ser muito rigoroso e credível para o exercer. O jornalismo é uma grande arma na democracia e as pessoas precisam dos jornalistas como precisam dos polícias, dos médicos, dos enfermeiros, dos advogados etc. A situação das fake news, de pessoas que saltam de assessorias de imprensa para o jornalismo e vice-versa, que representam grandes grupos económicos ou políticos e vão para o jornalismo. Tudo isto obriga a uma luta muito grande pela credibilidade e esta luta tem de ser vencida. O jornalismo é essencial para um mundo que se queira democrático. A crise de valores que se está a viver a todos os níveis com a ascensão da extrema direita, está a pôr os cidadãos à prova e o jornalismo tem de ultrapassar estas dificuldades, dar confiança às pessoas e ser importante no escrutínio e na capacidade de as informar devidamente.

JFC – Quais as maiores dificuldades em conciliar a vida profissional exigente de ser jornalista com a vida familiar? É complicado fazer esta gestão?

DS – Gerir uma vida profissional destas com a vida familiar e pessoal é muito complicado. É impossível marcar uma consulta ou estar inscrita num ginásio ou fazer um curso. Estando na linha da frente, a qualquer momento pode ser necessário avançar para um cenário de guerra, uma catástrofe, um atentado, uma crise política, etc. Todos nós estamos talhados para determinadas coisas e há jornalistas que não são capazes de lidar com esta pressão. Quando pertencemos a este grupo que está na linha da frente, a nossa vida torna-se, nesses aspetos, mais complicada. Em termos de gestão da vida familiar, tem sido muito importante a presença, desde sempre, da minha mãe, que ajuda muito a tomar conta da minha filha (que tem hoje treze anos e compreende perfeitamente esta situação) e também a do meu companheiro, que entendeu a minha vida e  isso é essencial, porque a nossa vida é uma soma de vários fatores e é impossível ser-se feliz mesmo sendo a melhor jornalista do mundo, quando o nosso núcleo familiar não está bem. Só conseguimos ser seres humanos plenos quando todos esses campos estão bem. Só me sinto bem e realizada profissionalmente, porque tenho o apoio da minha família. Roubo horas de sono a mim própria para conseguir estar com a família e fazer outras coisas que adoro, como ler, fazer comentário político na televisão espanhola ou passear e ir ao cinema.

JFC – Para terminar, que conselhos gastaria de deixar aos novos jornalistas que estão a surgir e surgirão no nosso panorama nos próximos anos?

DS – Só devem começar no jornalismo se tiverem uma grande paixão. É como um casamento entre duas pessoas. E alimentar essa paixão todos os dias, para que cresça. Só abdicando de muita coisa, se consegue aguentar uma vida como esta. É muito bonita, não há rotina, eu nunca sei o que fazer amanhã, mas é preciso ter feitio para isto e abdicar de muita coisa, não tendo sede de protagonismo, porque ser jornalista não é ser notícia. Ser jornalista é preferir andar na rua em reportagem a estar fechado num estúdio a ler o teleponto, pelo menos nos primeiros anos da carreira. O que me continua a dar mais gozo é contar histórias, dar notícias e contactar com diferentes tipos de pessoas todos os dias.

- 26 nov, 2019
- Fernando Gil Teixeira